domingo, 16 de dezembro de 2012

Para uma apologia do incómodo cultural

Há alguns anos, comecei a questionar a validade de usar a palavra "tolerância". Na altura, num artigo para o Público (que reproduzo abaixo), dizia simplesmente que toleramos o que, sem pode rejeitar, conseguimos manter na nossa órbita. Tolerar, não é, assim, do campo da efectiva relação, mas sim das possibilidade que se abrem ao cumprir regras de convívio.

Da mesma forma, não pagamos impostos porque os achamos essenciais; assim tem que ser. Toleramos os impostos por não se conseguir uma outra via. Regra geral, quem a consegue, segue-a. E esta, aplicada à cidadania, é a marca do falhanço rotundo.

O que fazemos, fazemos por Respeito, ou por obrigação? É esta a questão que cada vez mais me fascina. Como será possível, num tom muito kantiano, tornar o Respeito imanente, apriorístico nas nossas acções e nas nossas tomadas de opção?

No campo da relação, entre partes, a sessão de apresentação do livro de homenagem ao Frei Bento Domingues, trouxe uma afirmação simples e cristalina, quanto também de impossível. "Não há diálogo sem incómodo", afirmou Guilherme de Oliveira Martins quando falava sobre o frade dominicano que eu tanto admiro.

"Não há diálogo sem incómodo"?... poderá a falta de diálogo resumir-se a uma incapacidade, a  uma falta de vontade de sair de uma oposição de conforto? Sim, o diálogo é sempre resultado de uma capacidade de falar, de ver, e de escutar, é claro.

Quantas vezes as actuais dinâmicas de contacto entre culturas nas nossas cidades se resume ao "simpático" da festa, da partilha de moções em ambientes diferentes, em situações onde o exótico e o peculiar fascinam quase que como num circo... será isto diálogo? ou não é, antes, um conforto de ver, ao vivo, no nosso espaço, o bizarro do deferente?

O que nos torna, então, respeitadores?




terça-feira, 4 de dezembro de 2012

escrever, escrever, escrever-me

Ontem à noite, sentado no típico sofá de sala, dizia eu que mal terminasse esta onda avassaladora de burocracias, de papeladas, me ia lançar à escrita. É fácil de dizer, é quase catárquico, tem mesmo um sabor a ameaça num misto de desejo, mas, de facto, quando conseguirei escrever?
É verdade que gosto de dirigir, de coordenar. Gosto de lançar projectos e de os ver crescer. Mas quanto de cada um de nós se esgota em tarefas que, sendo muito importantes, não são exactamente o que nos daria prazer, nem são, sequer, o que de melhor nós poderíamos dar à sociedade?
Há umas boas duas semanas que sonho com projectos de escrita, de investigação, de reflexão. Como que numa fuga ao actual estado de coisas, ontem lancei três ideias. São projectos de livros, em campos muito variados, mas todos eles como que me ressuscitariam desta letargia intelectual em que cai quem manda, ou pensa que manda...
Foi muito por isso que este projecto de blog-diário nasceu: obrigar-me a escrever.
Preciso.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Re-encontrar o medo

Todos sabemos que todos temos fases mais complicadas na vida. Se há sabedoria que não carece de demonstração, apesar do positivismo nos ter invadido a forma de usar o cérebro, é esta, a das verdades feitas que, por serem tão comuns, se dizem de La Palisse.
Mas as verdades lapalissianas não são de menor validade e interesse que as rebuscadas e obtidas por pensamentos elaboradíssimos. Antes pelo contrário. Estas, as que imitam no nome o orador de má memória, são a essência de muito do que vivemos. São milénios de saber filtrado por engenhosos tempo que tudo fia.
Hoje, estava convidado para um casamento, e não fui. Paixão pela noiva? Não, nada disso, apesar de se tratar de uma muito interessante mulher. Há duas semanas que tenho o meu pai internado. É a sexta vez este ano. Desta, foi mais duro, mais próximo de ver como o sono é mesmo irmão da morte.
De manhã, antes de ir tentar organizar o ataque a uma série de tarefas, fui à Feira da Ladra. Preciso de me reencontrar com velhos hábitos que me habitam ainda. Estive muito tempo deles afastado, mas sinto-lhes a falta. Será fragilidade? Será a eterna vontade de conforto nos ritos, nos gestos e nas tarefas que se repetem?
Seria eu, afinal, um conservador típico, mascarado num rosto onde o liberal e o vanguardista se mostram apenas em momentos de verniz muito fresco? Andei a procurar pequenos "santinhos", pequenos registos ou santos padroeiros, lembranças de comunhões. Quanto de vida se encontra nos molhos de centenas destas pagelas singelas [o corrector ortográfico não me identifica a palavra pagela... portanto, repito a terminação, reforçando a sonoridade que me estava tanto a apetecer!].
Foram em número de vinte as aquisições. Vida a preço insignificante. Devoções, entregas, anseios e medos. É um universo excepcional de crença e de temor. Protegei-me, rogai, são algumas das expressões repetidas nas décadas iniciais do século XX. Tanto medo se tinha. Tanto se procurava de segurança num mundo que parecia desmoronar-se, e não tinham, nem a TVI, nem o Correio da Manhã para os inundar do mais fétido estrume que se tem à disposição!
Num desses registos, com a imagem a preto e branco de N. Sra. da Conceição no lado frontal, alguém encomendou tudo o que tinha à Virgem. Vejam como trespassa de medo a vida desta pessoa, deste ser: 
                         
Oração Á SANTISSIMA
 VIRGEM
                 
SANTISSIMA VIRGEM MINHA
TERNA E BÔA MÃE; EU VOS ESCOLHO 
HOJE PARA SENHORA E MESTRA 
DESTA CASA. EU NOS [sic] PEÇO PELA VOS
SA IMACULADA CONCEIÇÃO QUE
A PRESEVEREIS DA COLERA, DO FO- 
GO, DA AGUA, DOS RAIOS, DAS TEMPES
TADES, DOS LADRÕES, DOS TREMORES 
 DE TERRA, E DE MORTE SUBITA. 
ABENÇOAE E PROTEGEI VIRGEM 
SANTA TODAS AS PESSOAS QUE 
AQUI MORAM OBTENDO-LHE A 
GRAÇA DE EVITAR TODO O PE 
CADO, OUTRAS DESGRACAS E ACI- 
DENTES. PERSEVERAI-NOS TAM- 
BEM: DAS REVOLUÇÕES DA ANARQUIA 
E DUMA MORTE VIOLENTA. 
AMEN 
                 
 ... até o medo à anarquia e às revoluções... é lindo como o político se imiscui com a natureza.
 Há falta de melhor, somos conservadores, claro.

Abertura das inquietações

É uma daquelas verdades comuns: em Portugal não há tradição de diarística. É verdade, e bem que o é. Falta-nos memória e falta-nos reflexão sobre o nosso próprio caminho, as duas vertentes mais óbvias que nos dá esse hábito de durante uns minutos por dia deitar cá para fora o que nos vai na alma, mais ou menos seguindo o que esse mesmo dia nos ofereceu.

Para mim, o que me interesse neste exercício novo que, admito, não sei até onde levarei, é a necessidade que tenho de regressar a mim. Preciso de mim, de me centrar, de me encontrar. De me re-conhecer ou, melhor, como os franceses dizem, de re-nascer comigo novamente, de me «re-connaitre».

Passo muito tempo a pensar comigo mesmo, até a falar com os meus botões. Mas tudo o vento leva, toda a onda que surge apaga mais um pouco dessa escrita mágica na areia, essa forma tão directa de se chegar às essências das coisas. Escrita na areia. Essências. Afinal talvez tudo não passe de uma procura de validação de um futuro. De procura de respostas para o que parecendo acaso, talvez o não seja.