quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Religião enquanto Metáfora


Vai longe o excepcional ensaio de Susan Sontag sobre “A Doença enquanto Metáfora”. Iam os distantes finais dos anos setenta quando era escrito esse brilhante texto na recuperação de uma doença grave e prolongada da autora.
Hoje, muito tempo depois de a esse texto se terem vindo juntar as indagações sempre demolidoras de Foucault, a doença já está normalizada num horizonte onde a ideia de degradação se cruza com a de pecado e onde a culpa continua a fazer ecos num tempo já racional onde supostamente teríamos abandonado a ideia de falha, de mácula, de contranatura ao estado “doentio”.
Há cerca de um mês cruzei, quase sem querer, os horizontes teóricos de Sontag com os da História das Religiões. Após a leccionação de um curso breve sobre exorcismos, e da subsequente escrita de um pequeno texto sobre o mesmo tema, percebi como fomos, durante milénios, educados a ver a doença, não só como uma falha, mas mesmo como uma demonstração de uma qualquer natureza demoníaca em nós.
Ter uma verruga no nariz, como tão tipicamente apontamos às bruxas, era a marca de que estava possuída por um demónio, tendo-se a ele entregue. Era seu agente e actor. Uma malformação ou a cegueira, simplesmente, era sinónimo de pacto demoníaco, e mesmo quando no século XIX se quis encontrar uma forma de mostrar uma criança a mentir, foi pela deformação do narizito do seu pequeno que Gepeto percebia o embuste.
Mas hoje em dia as imagens da religião trazidas para a linguagem comum remetem-nos para um mundo onde a tal da falha, da mácula, quase de doença, surge de forma muito visível. Paralelamente, são importantes os estudos, entre outros, de Abddolkarim Vakil sobre a islamofobia e a forma como algumas palavras foram sendo alteradas no sentido negativo da sua conotação rácica-étnica-religiosa.
Tal como em certos países se tornou comum pedir um táxi-com-cão, para identificar um táxi que não seja conduzido por um muçulmano, continuamos a usar a palavra seita com um sentido depreciativo, surgindo ainda muitas vezes nas conversas de gente “educada” como sinónimo de grupos ou igrejas evangélicas.
A mais intrigante palavra de horizonte religioso transportada para a linguagem coloquial, e que revela os apriorismos que temos em relação ao universo religioso, é, obviamente, a palavra fundamentalismo. Fundamentalista passou a ser equivalente de terrorista. E esta rotação de significado, de um mundo ligado ao que fundamental uma fé tem, os seus textos base, para um quadro de desgraça e de destruição, é uma leitura neo-positivista que coloca uma etiqueta de erro civilizacional em todos aqueles que, muçulmanos, ou não, não aderirem 100% a uma forma de ver o mundo: laicizada e sem a necessidade de um motor divino que explique o seu devir. O Fundamentalista passa a ser todo o inimigo da visão ocidentalizada do mundo.
O mesmo se passa com uma em tudo semelhante palavra: ortodoxo. Esta tem, ainda, a peculiar característica de ter mesmo passado para o léxico específico do tratamento das religiões, baralhando tudo. Um judeu ortodoxo não é um judeu que segue a ortodoxia, a ortopráxis, do judaísmo. Um judeu ortodoxo passou a ser o equivalente, mas do lado oposto da barricada, ao muçulmano fundamentalista.
E é de guerra, de palavras e não só, que falamos. Um judeu ortodoxo seria, na base do que realmente significava, um judeu praticante e seguidos dos preceitos. Nada mais. Isto é, um membro praticante, por exemplo, da comunidade judaica de Lisboa. Um muçulmano fundamentalista é, tal como o ortodoxo, um muçulmano que segue o seu Texto Sagrado como base da visão do mundo e da organização social. Este, não faz necessariamente atentados terroristas.
Enfim, perdemos uma grande versatilidade de palavras que ganhavam nuances quando conjugadas por outras. Quando se falava num judeu ortodoxo, no século XIX ou mesmo em grande parte do XX, era necessário identificar a nacionalidade, a tradição cultural e a linhagem teológica. Hoje, numa linguagem rápida, um judeu ortodoxo é apenas um homem de longas e estranhas suíças a despontar por debaixo de um chapéu vindo de tempos oitocentistas.
Perdemos estas nuances, mas ganhámos em rancor e em ódio. Todos estes usos passaram a ser continentes poderosíssimos de violência. O resvalar destas palavras para este quadro maniqueísta é imagem de onde anda a nossa cabeça: desgraça e sangue. Pouco menos.




4 comentários:

  1. Muito bom e a fazer compreender o aumento do racismo que infelizmente se faz sentir um pouco por todo o mundo ocidental (digo ocidental apenas porque é aquele de que tenho mais conhecimento de causa).

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  2. Desculpe, mas não entendo a relação dos dois textos porque desconheço o texto de Susan Sontag. Está no Diário dela?
    Quanto à falta de diálogo entre religiões, nomeadamente com os fundamentalistas, desejo que a cultura traga luz a mentes perturbadas e usadas por algumas formas de poder.
    Boa noite.

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  3. Concordo com o seu texto, no entanto, parece-me que o título não se ajusta ao conteúdo do mesmo.
    No seu texto descubro uma certa "manipulação" (consciente ou inconscientemente, não sei) do nosso inconsciente colectivo,aliás, como aconteceu ao longo de séculos. A título de exemplo recordo apenas a palavra "marranos" para designar os judeus sefarditas, ou se quiser ser mais preciso, os cristãos-novos, mas não deixa de ser o mesmo processo.

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  4. Depois de ler o seu texto com atenção, destacam-se-me dois caminhos de reflexão:

    1. a ambígua relação entre as palavras e as coisas: existe sempre correlação entre as palavras e o sentimento /sentido que lhes é atribuído? podem as palavras gastar-se e corromper-se, sem que se destrua o halo de sagrado e permanecer aquilo que de indizível associamos ao sentimento sagrado (?)

    2. a relação entre a vivência do tempo e o sentimento religioso. Apesar da visão um tanto pessimista deste texto, existem hoje como talvez nunca antes possibilidades de encontro e de diálogo inter-religioso e de verdadeiros caminhos de redescoberta do essencial (do espírito) - mesmo que seja preciso inventar novas palavras e novas vivências que nos religuem aos locais, ao universo e à tessitura das histórias

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