domingo, 12 de maio de 2013

Mikhail Petrovich Artzybashev, O judeu (Estrofes & Versos, 2010.)


Mikhail Petrovich Artzybashev, O judeu, Estrofes & Versos, 2010.

De forma inesperada, dei por mim na Ler Devagar a folhear um livro para mim completamente desconhecido. O autor, nascido na Ucrânia, vivera na Rússia e o seu período de vida decorrera entre 1878 e 1927.
O Judeu, uma pequena obra, de pouco mais de vinte pequenas páginas, trata uma situação que deveria estar muito nas mentes desse tempo: a guerra, a devastadora belicosidade entre os Estados europeus, que lançava milhões de anónimos soldados para situações de esgotamento físico, psicológico e moral, levando-os para níveis de sub-humanidade para nós hoje totalmente desconhecidos, onde as trincheiras eram verdadeiras valas comuns, e onde o gás mostarda fazia a decomposição da carne sem ter em conta qualquer limite acordado entre nações para uma suposta ética de guerra.
Este conto trata de um grupo de militares que, após dias de dolorosos combates em quadro de total abandono no terreno, se perde. Procurando um rumo, uma direcção para caminhar, deparam-se com semelhante grupo inimigo. Frente a frente, a morte de quase todos eles era o inevitável. A escassos metros de distância, nada os poderia salvar.
O inesperado surge, dando-nos uma visão romântica, claro, mas surpreendente do que as identidades pode conseguir. Estamos na Europa Oriental, depois de um século onde o antissemitismo tinha sido gerado em grandes preconceitos. Estamos, também, num quadro onde os judeus são vistos acima, ou além das nações. Esse bem comum, como que os leva para um denominador que os une: a humanidade, aliás, palavra várias vezes usada neste texto.
Deixo aqui o final desse conto, tendo alterado apenas uma ou outra gralha. De resto, tudo foi deixado como se encontra na edição indicada. Leiam, merece a pena, sob o ponto de vista de um sentido de Humanidade:

Exactamente no instante em que a tensão atingiu o seu ponto mais alto e o pesadelo se preparava para dar lugar a um sentimento implacável, Hershel Mak, incapaz de controlar os seus nervos esfrangalhados durante mais tempo, começou a rezar na língua dos seus antepassados. Shma Isroel! Shma Isroel! Os seus camaradas não o entenderam e olharam-no aterrorizados, como quem olha para um louco, mas do outro lado uma voz assustada e dolente respondeu-lhe em judaico:
- Um judeu!... Um judeu!
O coração de Hershel Mak caiu-lhe aos pés. A alegria louca que se apoderou dele é indescritível. Foi uma alegria humana sincera que o encheu até à borda, quando do lugar de onde esperava que viesse apenas a morte e ódio lhe chegaram palavras humanas e familiares. Esquecido do perigo de morte, caiu de joelhos, ergueu os braços e gritou, como se estivesse a responder a uma voz em pleno deserto.
- Eu!... Eu!...
Ouviu-se um tiro; mas apenas o boné de Mak tombou e caiu na poça de lama. Do outro lado do rio, uma cabeça típica, com as orelhas a aparecer por debaixo do capacete luzidio, fitou-o nos olhos.
- Não atires, não atires! – gritou Hershel Mak em russo, alemão e judaico tudo ao mesmo tempo, agitando freneticamente as mãos. E o outro judeu, envolto numa longa capa cinzenta, também gritava qualquer coisa aos seus colegas soldados. Agora, em vez de apenas um, eram cerca de dez os pares de olhos que estavam fixos em Hershel Mak, espantados e subitamente alegres. Uma esperança vaga e indefinida reflectia-se nesses olhares humanos assustados, que de repente se tornaram vulgares. Em seguida, Hershel Mak e o judeu de capa cinzento-clara avançaram pela clareira e, patinhando na água, correram, confiantes, um para o outro.
Pararam entre as duas fileiras de canos de espingardas ainda hostis e abraçaram-se, num acesso exagerado de felicidade.
- És judeu? – perguntou o soldado cinzento. Continuavam a olhar um para o outro, como dois velhos amigos que se encontram onde menos esperavam que isso acontecesse.
Ao entardecer, depois de os soldados recolherem os respectivos mortos e feridos, cada um seguiu o seu caminho ao longo da ravina, agora azulada com a neblina do fim do dia. Os da rectaguarda estavam sempre a virar-se para o inimigo, que os observava desconfiado, e a agarrar nervosamente com as mãos os canos das suas armas.
Só Hershel Mak e o judeu de capa cinzento-clara caminhavam calmamente. Hersehel tagarelava como um macaco, metendo conversa com um soldado, depois com outro. Falava sobre a alegria que o invadira, sobre a grande missão do judaísmo. Mas ninguém o escutava e um dos soldados até disse, bem disposto:
- Vai para o diabo, porco judeu.


terça-feira, 7 de maio de 2013

Da necessidade de um pós-Ecumenismo


Após o 11 de Setembro, o mundo acordou para a dramática realidade de uma nova forma de fazer terrorismo. Se até então o terror, esta forma de luta ilegal e fugindo ao controle dos grupos de nações e às convenções internacionais, tinha tido como alvo maioritário pequenos grupos humanos, agora a massificação era a palavra de ordem. Massificação dada pelo resultado dos ataques, mas também pela magna cobertura dos media.
O mundo das religiões deixou de ser estrita preocupação dos religiosos. Todos os dias a religião passou a ser tema presente nos noticiários. Todos os dias passamos a ver imagens de pessoas a morrer devido a questões apresentadas como religiosas. Como nas torres de Nova Iorque, nas discotecas em Bali, nos comboios de Madrid ou no Metro de Londres, percebeu-se que a religião fanática, extremada e irracional podia chegar a qualquer um de nós.
Durante décadas, a palavra de ordem fora a «tolerância», ao abrigo das ideias de ecumenismo. A verdade é que o paradigma do ecumenismo, em que a palavra «tolerar» significa exactamente o sentido da permissão excepcional, resumiu-se a simples manifestações em que as confissões, através de alguns líderes, mostraram conseguir estar juntas no mesmo local. O que se alterou a nível dos crentes e das suas práticas de ver os membros das outras religiões?
De facto, a palavra «tolerar», tão usada nas relações entre religiões, merece algum cuidado. Qualquer dicionário da língua portuguesa nos dá o seu campo de significado: “atitude de admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adoptada por si mesmo; acto de não exigir ou interditar, mesmo podendo fazê-lo; permissão; paciência; condescendência; indulgência”. Nada menos ... ecuménico, na medida em que o espaço dado para os outros é sempre referenciado em relação a si.
É que o Ecumenismo, tal como o temos visto ser realizado, choca com a visão que a esmagadora maioria dos seus crentes tem da sua própria religião: a Verdade que é superior às restantes e que deve ser levada (muitas vezes imposta) aos outros. E esta é uma contradição insuperável: como pode uma religião dar um lugar ao “outro” se tem como postulado vir a ocupar o seu lugar?
Donde, por esta entre outras razões, o Ecumenismo em nada levou a um desaparecimento dos grandes conflitos religiosos: ele apenas acontece onde já existem condições para que aconteça, onde os líderes religiosos já estão predispostos ao diálogo e ao convívio.
Mas mais, dia-a-dia, todos tomámos consciência de que o universo das religiões afecta e interfere com o normal mundo de todos nós, sejamos religiosos ou não: as religiões não são um problema nem um monopólio dos religiosos. A religião, fazendo parte de uma das faces mais expressivas da actividade humana, a todos diz respeito e coma  vida de todos pode interferir.
Ora, é neste sentido, no âmbito deste imperativo que se apresenta à nossa sociedade, que é necessário ultrapassar o bem intencionado e de extrema importância diálogo inter-religioso. O ecumenismo, como o vimos crescer em importantes movimentos nos anos oitenta e noventa do século passado, fechou-se no seio das religiões e, dentro delas, em grupos muito específicos. É necessário ultrapassar o universo das religiões e chegar ao da cidadania (onde se encontram religiosos e não religiosos).
Ao fazer esta rotação que é de «convívio» para «conhecimento», e de «crentes» para «cidadãos», superamos a tremenda falha que existe na noção de tolerar. Entre cidadãos, religiosos ou não, não há lugares de maior direito; todos são legalmente iguais e com os mesmos direitos e obrigações.
Esta alteração de enfoque e de forma de tratamento do fenómeno religioso actual cimenta-se no conhecimento que as diversas partes devem ter umas das outras. Membros de uma sociedade global e diversa, todos os cidadãos devem ter as ferramentas mínimas para efectuar a sua cidadania plena e consciente. Estrangeiros ou nacionais, cristãos católicos, ortodoxos ou protestantes, muçulmanos sunitas, xiitas ou ismaelitas, judeus, teosóficos, bahá’ís, hindus, budistas, xintuístas, confucionistas, taoistas, animistas, e muitos outros, todos se integram numa sociedade que é a portuguesa e, acima de tudo, todos se devem identificar num corpo que participa das suas decisões, que é constituído por cidadãos conscientes, exigentes e críticos.
Este desafio, o do conhecimento das religiões, façam elas proselitismo no campo alheio, ou abdiquem dessa sua vocação, aplica-se a todos os religiosos e não-religiosos. No fundo, um pós-ecumenismo que não anula, antes pelo contrário, o ecumenismo, e que apenas o tenta trazer para um campo de funcionalidade e abrangência mais significativo.



Jornal Público, 6 de Janeiro de 2007, p. 8.

Obama e o terror religioso


“A árvore da liberdade tem de ser renovada, de tempos a tempos, com sangue de tiranos e patriotas” 
T. Jefferson

Para muitos, estamos a viver tempos de apocalipse. De resto, o regresso a essas visões do mundo é recorrente e enquadra alguns aspectos comuns. Um deles, convenhamos, é o de nascerem nos EUA. Terra onde nasceram grande parte dos fundamentalismos cristãos contemporâneos, o American Dream está constantemente entrincheirado entre visões que, mais que o negarem, lhe retiram o oxigénio tão necessário à Liberdade que canta.
Hoje, no Verão de 2009, vivemos mais um desses momentos. A literatura que podemos encontrar na internet sobre o presidente Obama enquanto Anti-cristo, demónio, ou um destruidor dos valores messiânicos da América, é num volume assustador e numa variedade que nos deixa perplexos.
Obama é ameaçado de morte por manifestantes, por intervenientes em programas de televisão, etc, etc, etc. O clima de tensão entre os meios religiosos mais extremistas vai-se alimentando numa espiral que ninguém pode saber onde vai terminar.
A frase de Jefferson, que Timothy McVeigh pintara na t-shirt que vestia quando foi executado pela autoria dos atentados de Oklahoma, vai-se repetindo em tom de ameaça: “A árvore da liberdade tem de ser renovada, de tempos a tempos, com sangue de tiranos e patriotas”.
A mistura é explosiva e reúne a cor e o local de nascimento de Obama (será mesmo americano?), a fobia homossexual e o trauma comunista, tudo muito bem condimentado com uma visão conspiracionista que, como se sabe, nunca pode ser efectivamente contrariada porque a sua natureza reside exactamente nisso, é obscura e escondida.
É fácil encontrar sites de grupos religiosos cristãos fundamentalistas onde se diz que o presidente é racista e que quer lançar o país em Estado de Sítio para o poder manobrar e, afirmam, destruir.
É uma visão de fim dos tempos de uma nação que viu nascer muitos dos grupos religiosos que hoje em dia dizem que o fim do mundo está próximo, numa tradição apocalíptica que vem desde os movimentos adventistas de meados do século XIX.
Mas mais que perceber este clima de terror, que poderá, no limite, culminar com uma tentativa de assassínio presidencial, o que nos deve interessar neste momento é um dado tantas vezes escamoteado na política europeia: algumas ideias religiosas podem dirigir o mundo.
Não tenho medo das ideias religiosas, mas sim dos seus fundamentalismos que não olham a preço para destruir o mundo, criando o “seu” mundo. Porque, sim, não tenhamos dúvidas, estes fundamentalistas americanos acusam Obama de querer destruir os EUA, mas eles é que os irão destruir.

Massificação e incultura religiosa


Nas últimas dezenas de anos deram-se importantes alterações no mundo da vivência da religião. Entre antropólogos, sociólogos e filósofos das religiões, nasceram conceitos como os de “erosão das identidades religiosas”, “religiosidades difusas”, ou mesmo, expressões quase impossíveis de traduzir para português como a noção de – pela falta de melhor - “turista religioso”.
Estas ideias aplicam-se a todo o renascimento religioso nas décadas de setenta do século XX, um ressurgimento que se manifestou em formas e atitudes totalmente novas: fuga aos movimentos / igrejas convencionais ou tradicionais; fácil deambulação entre credos e filiações; criação de uma atitude de pesquisa individual.
Ora, é neste contexto de afirmação da possibilidade e da liberdade de cada um fazer o seu percurso, preferencialmente atípico para auto-demonstração da singularidade, que se devem entender os fenómenos de massificação de obras sobre o fenómeno religioso. E referimo-nos aos livros de Paulo Coelho, de Dan Brown, ao filme de Gibson, a toda uma miríade de categorizações biblioteconómicas com que nos cruzamos nas estantes das nossa livrarias, que vão da espiritualidade ao esoterismo, passando pelo que no Brasil se chama de “auto ajuda”.
Resultante de um movimento totalmente livre de pesquisa religiosa, nasceu um imenso campo, um enorme nicho de mercado, onde cabe tudo o que afirme ser contra os ditames tradicionais. É essa a pedra de toque de quase todos estes fenómenos: afirmar que vão contra o instituído, criando, assim, a ilusão a muitos dos seus leitores de participação nesse desmontar de supostas fraudes milenares ou de viver experiências espirituais até então quase inacessíveis.
Talvez se possa, mesmo, alinhar todo este universo de produção bibliográfica em dois grandes campos. Por um lado, os livros que transmitem supostas vivências religiosas, espirituais e místicas até então vedadas; Por outro lado, as obras que, voyeristicamente, levam os leitores a viver um desmontar das grandes estruturas religiosas (nada mais voyerista neste universo que entrever nas páginas de um livro a possibilidade do acto sexual entre Jesus e Maria Madalena, por exemplo).
Em ambos os casos, o essencial é que este retorno ao sagrado, resultante de uma pesquisa individual não mediada por entidade alguma, levou a um boom editorial e ao facto de a religião estar na moda – os acontecimentos pós 11 de Setembro vieram consolidar este fenómeno.
Massificaram-se as leituras sobre religião. Os best sellers estão ai, mês após mês. Mas a cultura religiosa da população é cada vez mais baixa. Alguns museus, por exemplo, estão a adoptar descrições e explicações temáticas nas legendas de pintura sacra, respondendo à incapacidade dos visitantes compreenderem as situações retractadas.
E é cada vez mais baixa a cultura referente ao mundo religioso porque estes livros em nada a constróem, antes pelo contrário. Mas também porque não existem instrumentos que forneçam à generalidade da população informação credível e atractiva que venham colmatar o fim da massificação das catequeses.
Até há duas ou três gerações, quase toda a população tinha uma cultura religiosa mínima que advinha da obrigatoriedade da catequese no sistema de ensino. Era uma cultura facciosa, pobre, não especulativa. Mas neste momento ela simplesmente não existe.
Não é que se possa, em condição alguma, defender o regresso a esse sistema, mas urge tomar consciência de que no mundo das religiões se criam ideias feitas com a maior das facilidades, julgando que se está perante grandes e inquestionáveis verdades – porque essa é uma das vocações das religiões, agora transportada para a função da literatura: a de criar discursos de verdade.
Quantos de nós sabemos a que correspondem alguns dos feriados religiosos de que gozamos durante o ano? Esta é a faceta anedótica. Mas existem outras. O actual mundo de fundamentalismos religiosos é em grande parte alimentado por esta massificação da incultura religiosa.
Nada haveria a apontar a livros como os antes referidos, se eles não levassem o leitor, ou melhor, se o leitor não fizesse com o livro o percurso de criação de uma visão do mundo. E estas visões romanceadas, mas tidas como verdade por muitos leitores, são essencialmente fundamentalistas porque apresentam o mundo das religiões em tons altamente contrastados; uns são bons, outros são maus.
Nesta mecânica demonizante de parte da realidade, a simplicidade dá lugar ao simplismo. Longe de se estar a evoluir para um mundo com uma compreensão crítica sobre as religiões, cimentada na reflexão e no rigor, estamos a caminhar para uma crescente postura de anulação da tal individualidade que esteve na base deste surto bibliográfico.
Dominadoras, estas narrativas empolgantes que levam o leitor a vivenciar o que nunca tinham imaginado possível, castram o lugar do leitor no processo da leitura. Tudo é tão simples, tão óbvio, tão elementar, que o leitor simplesmente lê, acredita e reproduz.

 Jornal Público8 de Junho de 2006, p. 8.

... Jesus Christ, a super star!


Depois do alarido em torno do Evangelho de Judas, publicado em Portugal no início do verão passado (em duas edições, uma pela Ésquilo com tradução do original por Antonio Piñero e Sofía Torallas-Tovar), os media retomam a temática do Jesus histórico, lançando para os noticiários e as primeiras páginas dos jornais uma situação que surge como totalmente nova e provida do dramatismo típico dos assuntos que tudo colocam em causa. Contudo, a questão é bem mais complexa e merece alguns cuidados no seu equacionamento.
Em primeiro lugar, há que perceber que o Ocidente cristão desde há muito se habituou à ideia de que Jesus morrera e, porque ressuscitara e subira ao céu era, de facto, o Salvador. Esta ideia é tão profundamente enraizada que, muitas vezes, se refere Cristo, o epíteto, e não Jesus, o nome. Mesmo os não crentes comungam, muitas vezes, desta visão historicista da ideia de Salvação.
Em consequência deste aspecto quase civilizacional, foi muito tarde que se escreveram os primeiros arremedos de biografias de Jesus, textos que tentavam lançar luz sobre o homem de nome Jesus que, por razões várias, uma parte da humanidade tomara por Deus, fosse-o ou não. A estranheza neste novo olhar sobre Jesus, com este novos olhos não confessionais, era tanta que Renan, autor de La Vie de Jésus (Paris: Michel Levy Freres, 1863), perderia por esse motivo o seu lugar no Collège de France. De facto, o assunto muito coloca aparentemente em causa.
A questão é tão central na nossa própria formulação civilizacional, que não será por acaso que é exactamente neste momento que Bento XVI se prepara para lançar um livro sobre esta temática do Jesus sob o ponto de vista histórico.
Mas nem sempre foi assim: nem sempre esta religião teve como central a ideia de um salvador que ressuscita e, consequentemente, não existe (Não pode mesmo existir, ou não tivera subido aos céus) enquanto defunto.
Ou seja, interessa verificar que esta religião não nasceu como agora se nos apresenta. O nome «cristãos», os que seguem Cristo, nasceu em Antioquia já na época de Paulo - o principal divulgador do Cristianismo que, contudo, não conheceu Jesus. Como grupo autónomo do judaísmo, esta nova religião teve origem no espaço grego ou, pelo menos, judaico em diáspora, falante de grego e já não de hebraico. A ideia messiânica que está na base do nome da religião, kristos, a palavra que servirá como epíteto a Jesus, grafando-se «Jesus Cristo», é grega e não hebraica. Não é por acaso que a religião passou para o futuro com a designação de «Cristianismo» e não de «Jesuísmo» ou «Messianismo».
E isto não quer dizer que ao hebraismo fosse estranha a ideia de ressurreição como evidência da ideia de salvação. Ela era comum, quer a judeus, quer a gregos. Mas o caminho da ideia de salvação não se fazia apenas na dependência da ressurreição. Outras vias surgem significativamente claras em alguns textos não canónicos: os Evangelhos de Tomé e de Judas.
Nesses dois textos, verificamos que, em torno da ideia de Jesus, não existe a necessidade da morte e ressurreição. Aqui constatamos que, para algumas das comunidades primitivas de seguidores de Jesus, a ressurreição não era tida como necessária para se constituir um corpo de crença com os seus seguidores. A morte e ressurreição, para alguns crentes, não era central e, talvez, nem sequer a imaginassem.
Naturalmente, nunca poderemos saber qual a representabilidade relativa desta postura teológica. Supomos que, tendo em conta que a norma que vingou veio a ser a visão fundamentada no Cristo, aquele que ressuscitou, estes grupos fossem minoritários. Mas a verdade é que existiam e, em especial, não era por não acreditarem na ressurreição que deixavam de ver em Jesus o Filho de Deus... caminhos estranhos os da História
Enfim, neste modelo, é totalmente natural imaginar para a figura de Jesus um quadro familiar como, aliás, algumas tradições nos legaram. A ideia de que teria irmãos, assim como a de que teria vivido com Madalena, não é apenas criada por Dan Brown....
Ora, a questão hoje continua a ser complexa e, acima de tudo, incómoda. A eventual descoberta de um túmulo com sarcófagos e ossadas de um suposto Jesus e seus familiares aparece (e assim é apresentada) como a prova de uma grande mentira. Procuram-se testemunhos, leituras, opiniões... tudo é conduzido no sentido de procurar uma ideia de farsa por detrás da actual maior religião do planeta.
Os cristãos da Idade Média, que acreditavam nas lendas da vinda de Maria Madalena para o Sul de França, não deixaram de acreditar em Jesus pelo facto dele lhes ser apresentado como um homem que, como quase todos os outros, procriou. Os gnósticos das comunidades de finais do século I, que fizeram o Evangelho de Judas, não eram menos crentes em Jesus que os que seguiam os textos de Lucas, Marcos, Mateus e João que no século seguinte foram declarados canónicos.
Será que os cristianismos actuais, quer o católico, quer o evangélico (este, muitas vezes profundamente fundamentalista e quase nada crítico em relação à literalidade dos textos), conseguirão não se sentir abalados com estas descobertas, sejam elas verdadeiras ou não?

 Jornal Público22 de Abril de 2007, p. 47.

Trocamos competências relacionais por crédito internacional


Todas as sociedades são compostas por elementos em equilíbrio. Mais ou menos estáveis, esses equilíbrios funcionam como ecossistemas em que cada parte tem um lugar e uma função mais ou menos determinada. Com um lastro de identidades e com uma parcela regrada de liberdade, esses ecossistemas em que os humanos se gerem conseguem criar algum espaço para a evolução.
De facto, esse espaço de liberdade e de criatividade é, normalmente, definido em torno de objectivos. No caso das migrações, esses objectivos podem ser do foro profissional ou criados por motivos de sentimento de culpa e de espoliação. Escassa é a parte de uma colectividade humana que deseja, em si mesma, a miscigenação. Essa mistura, a multiculturalidade, aceita-se, regra geral, por moda, porque tal é politicamente correcto, ou porque ela é imposta por uma norma superior.
Apenas o passar dos anos consolida a relação e destrói a estranheza do confronto com o outro. Apenas políticas sólidas de integração conseguem ir contra essa reacção quase doentia que é a repulsa ao que é diferente.
Em Portugal, graças a dinâmicas de diversa ordem, em muito, devido a correctas políticas de integração, os imigrantes são geralmente bem aceites e não encontramos em território nacional focos de discriminação negativa. Antes pelo contrário, há hoje a noção exacta da parcela do PIB que é criado devido a essa gente que buscou em terras lusas melhores oportunidades.
A restante Europa, se bem que com orçamentos bem mais consolidados, não pode apresentar os resultados positivos de que nos devemos orgulhar. Quer a França, quer a Alemanha, seguindo a Suíça da famosa banca, parecem não ter conseguido fazer o seu “trabalho de casa” no que respeita à integração dos imigrantes.
Os caminhos que se parecem começar a trilhar são, não de complexidade alguma, mas da mais simples linearidade: onde iremos com as políticas que materializem as afirmações como as de Merkel, no passado dia 16?
Sim, a multiculturalidade alemã parece estar de muito má saúde. Mas, todo o discurso da Chanceler incendeia e dá foro de legitimidade às mais racistas posturas.  A Europa, começando pelas suas duas cabeças, parece não ter compreendido o quão necessita de imigrantes. Num quadro de quebra populacional, ou nos conformamos com o facto de muitas tarefas ficarem por realizar, de muitas empresas fecharem por falta de mão-de-obra, ou pegamos no problema e fazemos (mais vale tarde, que nunca) políticas que os integrem.
Talvez fosse interessante olhar para este endividado país e, por uma vez, imitar o que por cá se fez. Quem sabe se podemos trocar esse know how por umas décimas nos juros da dívida…

Jornal Público, 27 de Outubro de 2010, p. 37.

Anti (semitismo - judaísmo - israelismo – sionismo): algumas diferenças


Num momento em que a guerra de Israel contra o Hezbolah parece já não vir a ser um conflito relâmpago, uma incursão cirúrgica, urge olhar para as palavras que usamos com um cuidado redobrado, fugindo à leveza da fugacidade das realidades passageiras.
De facto, no actual mundo do fast food intelectual e cultural, assistimos constantemente ao abusivo uso de determinados conceitos, de vocábulos que nasceram com definição clara do seu sentido mas que, pelo seu uso muitas vezes irresponsável, o perderam por completo, lançando um caos pantanoso onde tudo pode ser dito.
Não se trata de um purismo linguístico, mas sim de um esforço que é necessário fazer para afastar muitos mal entendidos e muitos juízos de valor.
E é importante tratar as realidades com os nomes que, de facto, se lhes aplicam, porque os nomes, as palavras, querem dizer alguma coisa, criam nuances de sentido, subtilezas de pensamento. A generalização de certas expressões que deixam de ter um sentido claro é uma das mais profundas provas de iliteracia.
O caso dos quatro vocábulos usados em título é significativamente importante porque nos obriga a um exercício de pensamento em que se separam fenómenos diferentes. Sem se compreenderem, nas suas especificidades, esses fenómenos, podemos estar a lançar os conflitos para campos ainda mais dramáticos, criando assim uma nova conflituosidade.
Esta conflituosidade criada nas opiniões mediante o uso de certas expressões, pode levar a reacções extremadas por parte de grupos islâmicos e judaicos, dificultando o diálogo e lançando ainda mais discórdia: o uso errado de certas palavras leva-nos para um horizonte de criação de uma guerra virtual em torno de judeus, islâmicos e “ocidentais”.
Historicamente, o «anti-judaismo» nasceu primeiro. Baseado na ideia de que os judeus mataram Jesus, o Cristo, o Deus Vivo, criou uma mácula que se estendeu por dois milénios. Culpados do deicídio, os judeus foram perseguidos por praticarem uma religião que conduziu a esse crime máximo, constantemente considerados um dos males do mundo.
O «anti-semitismo» difere da noção anterior porque perdeu a carga religiosa e se abriu ao horizonte cultural mais largo do mundo semita. Um anti-semita não persegue um judeu porque ele pertence a uma religião, a um grupo humano, que optou por matar Jesus.
O anti-semitismo existe porque vê nos judeus os descendentes de uma raça inferior, os semitas. Ora, duas considerações há a fazer: 1) este fenómeno está plenamente enquadrado numa Europa que não integrou as comunidades judias, e que via nelas algo de exterior a si mesmas (os semitas não eram europeus, eram asiáticos); 2) esta palavra teve maior expressão aplicada a judeus, mas designava genericamente todas as populações com origem no Médio Oriente, incluindo árabes e islâmicos.
Desta forma, o que se passa em Israel, na Palestina e no Líbano nunca pode ser designado como anti-semitismo: ambos, palestinianos e israelitas, são semitas.
Donde, é a noção de «anti-israelismo» que deve ser lançada em campo em detrimento da anterior. E este campo já pouco tem a ver com a religião, já pouco tem a ver com a visão de raças inferiores, em tudo tem a ver com uma delimitação de um estado, em tudo tem a ver com a definição das fronteiras e com as resoluções da ONU que obrigavam Israel a confinar-se a uma determinada linha fronteiriça.
Ser anti-israelita não implica uma posição antisemita. Um dos «anti» é de natureza “rácica”, o outro, é de natureza política.
Mas, obviamente, nada é linear. Transversalmente, há ainda a ideia de «anti-sionismo», conceito de mais difícil definição. O moderno sionismo nasce no século XIX e tem como objectivo o restabelecimento de uma pátria judaica no espaço do antigo Israel. Muito do anti-semitismo do século XIX nasce por oposição às linhas de poder de grandes famílias judias que fomentaram esses discurso de regresso à Palestina.
Para muitos, esse regresso implicava um domínio completo e total da região, e não apenas de um território mais pequeno. Pretendia-se, miticamente, alcançar os vastos domínios de David e de Salomão, recriando uma certa ideia de império, de domínio muito acima do nacional.
Complexificando ainda mais um pouco, o facto de o Estado de Israel ser um Estado Judaico, e de os judeus pelo mundo fora se sentirem solidários com essa nação (muitas vezes com dupla nacionalidade simplesmente por serem judeus), provoca o esbatimento dos conceitos anteriores. Por analogia, as reacções às comunidades judias fora de Israel são como que um ataque a Israel na medida em que há uma relação próxima entre essas duas realidades.
Muito se ganhava se as palavras fossem usadas correctamente. Muito do que de conflito latente se tem criado na Europa poderia ter sido talvez evitado, ou amenizado, se quem escreve ou fala sobre estas questões não falasse, por exemplo, constantemente em anti-semitismo, relançando um fantasma que, agora, quase não existe. Se continuarmos a falar tanto dele e da forma como o temos feito, talvez o ressuscitemos ...



Jornal Público, 13 de Agosto de 2006, p. 7.

A dívida individual como base de um investimento colectivo?


Um olhar para o distante início da monetarização

"Se um dos teus irmãos empobrecer, e não satisfizer as suas obrigações para contigo, protegê-lo-ás, mesmo que seja um estrangeiro ou um inquilino, e deixa-o viver contigo. Não receberás dele juros nem lucro algum, mas teme o teu Deus para que o teu irmão viva contigo. Não lhe emprestes o teu dinheiro com juros, nem lhe dês os teus mantimentos para disso tirar proveito."
Levítico (25, 35)

Há, por vezes, uma sabedoria que rasga os tempos e irrompe na nossa mente como um trovão que nos remete para as forças ancestrais da natureza. Alguns dos textos mais antigos da humanidade têm esse condão, o de nos despertar para o essencial, subtraindo-nos ao supérfluo. Quando nos parece que andamos enredados em soluções fast-food que nada nos trazem de novo, há sempre uma lufada de ar fresco numa esquina a que nos propúnhamos passar.
Uma dessas esquinas ou encruzilhadas civilizacionais encontra-se no mapa da Bíblia, num inesperado texto de carácter muito formal. Esse texto, muito ligado ao legalismo, portanto, aparentemente pouco rico em aspectos de humanismo, é o Levítico. Seja-se crente, ou não, nos tempos que correm, este texto está repleto de boas práticas económicas vindas dos primeiros séculos de monetarização da economia.
Na mentalidade antiga, o lucro era um resultado que espelhava uma relação com o divino. Temia-se o deus que possibilitava a riqueza. A forma como se geria essa riqueza dada ou possibilitada pelo deus era imagem do que essa mesma divindade poderia pedir em contas num juízo final.
Pela prática apontada pelo Levítico, se uma das partes contratuantes não consegue cumprir o estipulado, em vez de se exigir o pagamento, levando a uma ainda mais profunda e irreversível falência, criam-se as condições para uma evolução financeira que possibilite a retoma da actividade e um futuro pagamento, diríamos nós, sustentado.
A cobrança de dívida é, desta forma, travada nos momentos limite. O aparentemente defraudado cobrador transforma-se naquele que deve criar as condições para que o que está em falta volte a poder cumprir os seus deveres.
Muito inteligentemente, esta forma de acção e de protecção é um verdadeiro investimento no futuro, potenciando, a médio e longo prazo, efectivas cobranças da dívida na totalidade, e não apenas as cobranças parcelares que o curto prazo por hastas realizaria.
O que de essencial tem este pequeno excerto antigo é exactamente o facto de ser antigo, moldado pelo muito correr de água debaixo de pontes. Muita falência, muita gente passada à escravatura por impossibilidade de pagar as dívidas tinha sido retirada à massa produtora e pagante de impostos. Quem lucrava com isso? Obviamente, ninguém lucrava com uma situação económica em que parte da população deixasse de ser produtiva. A longa passagem dos séculos demonstra-o bem. A nossa escassa memória colectiva social afasta-nos de conclusões acima do pensamento diário das bolsas.
Introduzida na economia do Mediterrâneo no início do I Milénio a.C., quatro séculos depois, as principais culturas dessa região deparavam-se com sistemáticos problemas de endividamento que colocavam os próprios sistemas políticos em risco – como hoje, diríamos nós.
Este é o confronto da História enquanto modelo. Não porque a História seja o campo do exemplo de morais e práticas que devamos imitar. Mas porque nos mostra como somos novatos nisto de saber como funcionam as economias e, em especial, as pessoas e as sociedades quando as crises as afectam.
Realmente, imaginemos uma sociedade em que os endividados são acolhidos em “casa” para voltarem a ser produtivos e a pagar impostos? Era bem pensado… e já alguém o pensou há cerca de 2.500 anos. Talvez nunca ninguém o tenha levado à prática.



Jornal Público15 de Janeiro de 2011, p. 36.

alentejo



Na imensidão que o olhar nem sequer consegue abranger, a paisagem deste além-Tejo, pré-Algarve, torna-se quase absurda de contrastes e de sensações tão opostas que provoca. Diz a forma como as gentes vão criando as palavras e as expressões, que esta é a “auto-estrada do Algarve”. É verdade que sim, que o é, mas este é o caminho do nosso reencontro com a calma, com a fluidez da paisagem que se frui, com a languidez que é desejo de ficar.
Tudo nos impele a ir mais depressa. Contudo fica sempre no viajante a vontade de parar, de ver melhor aquele pormenor porque, afinal, aquela paisagem é monótona, mas é tão rica no despertar dos sentidos, que ficaríamos longamente a ouvir essa harmonia de cores, de saberes, de sabores.
É assim, o Alentejo, as suas planícies, as suas estradas e caminhos. Num perder de vista parece ser tudo igual. Num olhar descuidado, perdemos o controle do preconceito e ligamo-nos para sempre a esta terra milenar onde cada torrão de terra já viu passarem cavaleiros e cruzados, padres, rabis e imãs, filósofos, mercadores e saltimbancos.
É simples misturar os opostos. Basta uma pitada de sal, um pouco de coentros, e deixar o ambiente fazer o resto.

Direitos individuais e Deveres universais: judaísmo e economia


Genealogicamente falando, aquele a que normalmente designamos por espaço de Israel, mais precisamente, o Mundo da Bíblia, é pleno herdeiro das tradições legais de toda a Mesopotâmia.
Desde o III Milénio a.C. que vários códigos legais tinham surgido com o intuito de gerir a vida em sociedade, uma sociedade cada vez a viver em maiores urbes e, acima de tudo com formas de relações também cada vez mais complexas. Trabalho, propriedade, tudo tinha que ser gerido com cuidado pois poda implicar revoltas, descontentamentos.
Mas mais. A administração da justiça surge desde muito cedo como a forma, por excelência da imagem régia. Numa época em que se está ainda a definir o que se virá a chamar «Rei», a administração da justiça o que Foucault dirá ser o “monopólio da violência” a que se chega numa situação imite no século XVII, com o nascimento do Estado Moderno, punir é gerir o caos, domar as forças destruidoras da sociedade e da ordem. Tudo começou aqui, mais propriamente em Eshnuna, com o grande momento em no chamado Código de Hammurabi.
Neste último, com o nome do monarca que o mandou erigir na negra e duríssima diorite, o rei é mostrado a receber a “Lei” do deus Sol. Ela, essa dita Lei, é a maior dádiva dos deuses ao mundo, ao Homem e, naturalmente, a um monarca que se quer afirmar quase desse mundo sobre-humano.
Ao referir estes simples aspectos, o tal Mundo da Bíblia surge-nos imediatamente a nossos olhos.
Primeiramente pela natureza casual do que encontramos em ambos os casos: as leis antigas são reunidas, não em corpus sistematizados, em códigos civis, mas sim em colectâneas de sentenças que servem de exemplo. Assim nos é apresentado no Código de Hammurabi, assim vemos em Salomão.
Mas ainda porque no Mundo da Bíblia, será levada ao limite a necessidade de uma Lei, uma lei enquanto um dever, uma afirmação de ordem. A génese do monoteísmo judaico está perfeitamente intrincada com a génese da própria identidade do povo e das estruturas sociais e políticas em que se desenvolveu.

A Lei, o sentido universalizante
Um dos momentos mais importantes de rastrear para a compreensão da construção do corpo de textos normativos do monoteísmo judaico encontra-se no Deuteronómio e nos estratos redaccionais e de compilação normalmente chamados de deuteronomistas encontrados noutros livros bíblicos. Nesse livro, posterior ao exílio da babilónia, encontramos estruturada e apresentada a Lei, isto é, todo o conjunto de códigos a que está obrigado o povo judeu.
Podemos começar por afirmar que o sentido do texto, a Lei, usa o sentido da história para se afirmar, se robustecer, e validar as suas pretensões. Não só o livro Deuteronómio tem a início um prólogo histórico – os primeiros onze capítulos -, como é com esse prólogo que discursivamente se lançam as bases da necessidade da existência e adopção dessa mesma Lei.
Especificando, ao longo dos estratos deuteronomistas, podemos encontrar dezenas de fortíssimas valorações relativamente à memória do cativeiro no Egipto. E porquê? Porque é decorrente da vinda do Egipto a instalação em Canaã. A justificação da Lei cruza-se com a legitimação da instalação. Mais, a dinâmica da promessa que conduz à instalação é apresentada como dependente do cumprimento da Lei.
De facto, no início do livro é logo enunciado o elemento que, nesse mesmo discurso, surge enquanto finalidade: a instalação em Canaã. De facto, toda a narrativa está enunciada no sentido cronológico da ida e chegada a Canaã, dependendo esta da clara e pronta adopção da Lei:
[…] Eu te exporei todos os mandamentos, leis e preceitos que lhes ensinarás e que eles cumprirão na terra que Eu lhes darei em propriedade. […] Segui o caminho que o Senhor, vosso Deus, vos ordenou, para viverdes e serdes felizes. Assim, prolongareis a vida na terra de que ides tomar posse. (5, 33)
Ou, ainda:
O Senhor ordenou-me, então, que vos ensinasse as leis e os preceitos que deveis cumprir na terra para onde ides, para tomardes posse dela. (4, 14)
O importante é que este discurso colocado na boca e na época de Moisés, foi redigido vários séculos depois, quando a instalação no território era já acontecimento passado.
Isto é, está assim construída a possibilidade de uma identificação fortíssima entre uma sociedade e uma divindade: um espaço e uma organização comum ditada por Deus, a Lei Mosaica.
Profundamente marcada pela relação com um facto histórico, a identidade judaica, e o seu deus em processo de monoteização, surge claramente historicizada e fechada sobre esse momento como que iniciático vivido pelo grupo. Mais que esse momento, usado como chave justificativa, o centro encontra-se, de facto, na necessidade da adopção da Lei.
Tudo, a nível da legitimidade de tomar o espaço com que o povo se identificará, está sujeito à adopção de uma Lei… o modelo da gestão das vivências situa-se na existência de leis. Mais, de leis vindas de um deus.
           
Aliança e dever
De resto, se na História de Israel, no seu segmento histórico, encontramos tão patente esta ideia da necessidade de uma Lei e da sua relação profunda com a identidade colectiva através da forma de legitimação da ocupação do espaço, a verdade é que já em épocas anteriores esta dimensão havia sido experimentada.
Todo o Antigo Testamento se encontra marcado por um princípio base: a contratuação. Assim se passa em vários patamares de aliança entre Deus e o seu povo (Abraão, Moisés, consignação da monarquia, etc.). Talvez um dos maiores símbolos desta religião fosse mesmo a famosa Arca da Aliança.
De resto, basta usar uma qualquer concordância bíblica, para se ter acesso à dimensão verdadeiramente omnipresente desta ideia: 276 vezes é quanto a palavra «aliança» surge na Bíblia, quase todas elas no Antigo Testamento.
O universo de significado é sempre muito próximo. É a própria ideia de Povo Eleito que radica nesta situação de Aliança. De resto, este aspecto decorre, em tudo, do que tratámos antes: a legitimidade da instalação em Canaã implicou uma aliança, tal como já antes acontecera com Abraão.
Muito linearmente, estamos perante um grupo, uma ou mais sociedades, que centraram parte do seu imaginário na ideia de um contrato. Ora, em primeiro lugar este contrato é ao mais alto nível, com Deus. Em segundo lugar, esse Deus participante no contrato, não é um normal indivíduo: é uma entidade que não aceita facilmente a falha nesse quadro legal, como muitas vezes o vimos fazer no Antigo Testamento.
Usemos expressões como, Deus vingativo, temor a Deus, o importante é que era sabido que uma das partes contratuantes era muito mais poderosa e vigilante que a outra.
Inevitavelmente, quando falamos de contrato, esperamos rigidez de regras, determinação de acção e, em especial, respeito e prossecução dos objectivos traçados a início. Como súmula, aquilo de que aqui falamos é de Confiança ou, por outras palavras, Segurança.

Elementos éticos e de prática económica
Depois de um breve olhar por dois princípios de mentalidade relativamente vagos, olhemos agora para o universo da concretização em práticas quotidianas a nível do que mais desumanos nós muitas vezes apontamos: a economia.
Vejamos algumas dessas regras ou normas, não esquecendo nunca que o judaísmo é, acima de tudo, diverso. Todas as generalizações realizadas têm em conta um horizonte ideal, imaginário, de um grupo padrão que, naturalmente não existe em todo o bloco das considerações aqui realizadas.

Política de preços e de lucros
Quando nos referimos a negócios, neste mundo religioso e mental onde encontramos uma profunda ligação entre a possibilidade de enriquecer e a anuência do divino, somos levados a pensar, então, nas formas de gestão da política de preços e de lucros. Se a riqueza é um dom de Deus, e se a riqueza se adquire pelo lucro, que regras estão subjacentes a esta mecânica?
Em primeiro lugar, e tendo em conta o quadro cultural da origem do judaísmo, tudo nos leva a crer que os juros praticados seriam altos (entre os 30 e os 50% em poucos anos)[1]; o que poderia ser, aliás, uma resposta por parte de quem emprestava dinheiro ao facto de se terem criado formas cíclicas de perdão de dívida.
Em segundo lugar, encontramos um mundo de negócios altamente aberto à criação e oportunidades e de lucros, mas sempre constrangido pelo limite correcto dessas práticas. Um limite que é sempre uma definição de regra e de práticas dos indivíduos, mas também do todo social – num grupo onde riqueza e saber advém de Deus, o seu uso implica todos.
Assim, vários trechos antigos nos mostram uma profunda aversão a atitudes de alterar ou esconder, ou mesmo viciar, as regras deste jogo. Oseias, por exemplo, não hesita em usar uma imagem deste universo da confiança necessária nos negócios:
                Canaã é mercador de pesos falsos e amigo da fraude (Os 12, 8)
Por oposição, assumindo os deveres de equilíbrio contratual, qual imagem da Aliança como já apontámos, Efraim afirma de si:
Em verdade, tornei-me rico, adquiri fortuna. Em todo o meu esforço não me encontrarão culpa ou pecado(Os 12, 9)
No fundo, tudo se pode resumir à questão do preço justo e do duplo benefício: o preço justo é aquele que ambas as partes acharem... justo e, em especial, que traga clara vantagem e interesse a ambos. O Levítico (25, 14) diz-nos isso de forma clara:
Quando fizeres uma venda ao teu próximo, ou se comprares alguma coisa, não vos prejudiqueis um ao outro.
Utópica, talvez, esta sentença era a imagem da ordem que se queria manter mesmo através dos negócios. Mesmo no quadro do lucro, era suposto o Povo Eleito respeitar o equilíbrio, quem sabe, a equidade.
De facto, a busca de riqueza fácil é por diversas vezes apontada como um mal, denegrida seriamente, como no Eclesiastes (5, 9):
Aquele que ama o dinheiro nunca se saciará do dinheiro, e aquele que ama a riqueza, a riqueza não virá ao seu encontro.
Mais uma vez, não é o desejo de riqueza que comanda o processo da sua aquisição: é algo superior, como vimos, o próprio Deus.

O empréstimo como política social
Tendo em conta a questão de identidade hebreia ou judia, nunca ficou claro de que forma se aplicavam os juros aos correligionários de religião. O Deuteronómio (23, 20) nega a prática da usura entre hebreus, entre membros do Povo Eleito:
Não exigirás ao teu irmão juros de dinheiro, juros de comida ou juros de qualquer outra espécie. Poderás emprestar com juros a um estrangeiro, mas não ao teu irmão.
Contudo, mais à frente (25, 35), apresenta-nos o que realmente se passaria, e cria mesmo elementos de gestão para a falta de cumprimentos das obrigações – donde, existiam:
Se um dos teus irmãos empobrecer, e não satisfizer as suas obrigações para contigo, protegê-lo-ás, mesmo que seja um estrangeiro ou um inquilino, e deixa-o viver contigo. Não receberás dele juros nem lucro algum, mas teme o teu Deus para que o teu irmão viva contigo. Não lhe emprestes o teu dinheiro com juros, nem lhe dês os teus mantimentos para disso tirar proveito.
Como depreendemos, o lucro, sendo a já referida atitude que espelha uma relação com o divino, implica a ideia de temer a esse Deus que possibilita a riqueza. Mas, em especial, adquirir é um processo em que o dito jogo da economia e finança não pode estar falseado: se uma das partes não consegue cumprir o estipulado, em vez de se exigir o pagamento, levando a uma ainda mais profunda falência, criam-se as condições para uma evolução financeira que possibilite a retoma da actividade e um futuro pagamento, diríamos nós, sustentado. A cobrança de dívida é, desta forma, travada nos momentos limite. O aparentemente defraudado cobrador transforma-se naquele que deve criar as condições para que o que está em falta volte a poder cumprir os seus deveres.
Muito inteligentemente, esta forma de acção e de protecção é um verdadeiro investimento no futuro, potenciando, a médio e longo prazo, efectivas cobranças da dívida na totalidade, e não as cobranças parcelares que o curto prazo por hastas realizaria.
A visão do problema toma, mesmo, vertentes um pouco inusitadas e, de certo, exageradas na prática. As imagens, as situações bíblicas são, muitas vezes, fruto não de sistematizações legais, mas o corolário de alinhavo de sentenças que serviriam como exemplo. No Deuteronómio temos uma dessas descrições que deve ter tido como base uma situação que, por ter sido tão inesperada, foi rigorosamente detalhada e mereceu ficar na memória colectiva. Neste caso, verdadeiramente excepcional, é lançada a ideia de dignidade do devedor, aquele que mantém direitos, um dos quais o de não se ver obrigado a ver a sua morada invadida por aquele a quem deve (24, 10-13):
Quando emprestares alguma coisa ao teu próximo, não entrarás em sua casa para tomar penhor. Esperarás fora, e o homem a quem fizeste o empréstimo é que virá cá fora trazer-te o penhor. Se esse homem for pobre, não te deitarás com o seu penhor. Devolver-lhe-as o penhor ao por do sol para que possa repousar sobre o seu manto e te abençoe.
Defendendo os mais frágeis na estrutura social, ocorreram, mesmo, formas de limitar o preço de bens fundamentais. Neste caso, como nos anteriores, verifica-se que o bem individual, adquirido através do lucro em negócio, não colidia com o bem social global. O controle de alguns preços era um instrumento para que nunca ninguém chegasse a uma situação de extrema pobreza. Não se chegando a esta situação, mais facilmente se seria, a médio prazo, um novo consumidor ou mesmo investidor.
Por fim, todo este universo se realiza no campo dos compromissos, dos laços e dos afectos, podendo tudo passar ao lado dos poderes e dos tribunais.

Relações laborais
Os pontos que tratámos antes levam-nos ainda a uma outra questão em tudo semelhante, ou mesmo deles decorrente, da junção entre a ideia de aliança, ou melhor, de contratuação e confiança, e a de apoio social. O universo laboral é esse ponto de encontro, nas relações entre quem emprega e detém o capital ou, usando ainda a linguagem marxista, os bens de produção, e quem labora sob ordens superiores nesses meios que lhe são, a nível de posse, alheios.
Um texto do Deuteronómio é muitas vezes seguido pelos comentadores para esclarecer a posição entre os bens ou o espaço e produção, e aquilo que o trabalhador dele pode retirar para si. No fundo, espera-se que o empregado use, na medida das necessidades, dos bens que são como que, para esse fim, comuns, mas sem se apropriar deles para além do estrito uso ou consumo imediato e efectivamente necessário. Mas, vejamos o próprio trecho, eloquente na apresentação poética desses princípios (23, 25-26):
Quando entrares na vinha do teu próximo, poderás comer uvas até ficares saciado, mas não as levarás no cesto. Quando entrares na seara do teu próximo, poderás escolher espigas com a mão, mas não colherás à foice na seara do teu próximo.
Mas, esta postura de certa condescendência, não levaria a abusos? Decerto que sim, mas é de lembrar que dois dos últimos Mandamentos, o 8º e o 10º, remetem exactamente para o roubo e a cobiça aos bens do próximo – isto é, na mais sintética e, porventura, mais seguida legislação hebreia, tudo estava, à partida acautelado.
Noutro campo de interpretação, esta, à falta de melhor palavra, liberdade que é dada ao trabalhador, reside no facto de, em primeiro lugar, toda a terra ser, primeiramente, de Deus, mas sobretudo porque a condição de trabalhador é, para os judeus, inata à própria criação do Homem. O muitas vezes designado “Mandato Cultural” mostra-nos exactamente isso: desde o casal primordial de Adão e Eva que o trabalho está presente. Na leitura cristã, essa “queda” é uma punição que a teologia lançou na História da Humanidade mas, num sentido puramente de vivência social, o que esse episódio nos mostra é uma total dependência do Homem em relação ao trabalho:
Maldita seja a terra por tua causa. E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho (Gn 3, 17b)
Se tido como uma imagem da Humanidade, esta determinação primeva implica uma total e absoluta transversalidade do trabalho.
Ainda neste campo da obrigatoriedade do trabalho, nunca é por demais lembrar o facto de se ter criado um dia de descanso semanal: ter um dia de pausa, significava que nos restantes se trabalhava - de tal forma que era necessário descansar. Mais, basta ir ao quarto Mandamento para verificar essa linearidade de postura:
                       Trabalharás durante seis dias e farás todo o teu trabalho (Ex 20, 9)
Isto é, e no limite da interpretação, mais que ter que trabalhar seis dias, não é por parar ao sétimo que alguma coisa fica por fazer...
E, na prática, a ética do trabalho resume-se a uma visão extremamente simples da criação de riqueza. Seguindo Eclesiastes (5, 8), "O proveito da terra é para todos", como fora dado no momento da queda de Adão e Eva.
Mas, se o trabalho é para todos, o mesmo Eclesiastes não se afadiga de afirmar que o rico, o patrão, tem mais problemas que o empregado. Numa significativa desresponsabilização do “proletariado”, afirma (5, 11-12):
Doce é o sono do trabalhador, quer tenha comido pouco ou muito; mas a abundância do rico não o deixa dormir descansado. Vi outra dolorosa miséria debaixo do Sol: a riqueza entesourada para desgraça do seu dono.
Se o Eclesiastes parece apontar o dedo ao trabalhador despreocupado, Jeremias abre toda uma importante linha de defesa dos direitos dos assalariados:
            Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça, e os seus aposentos com iniquidade. Ai daquele que obriga o seu próximo a trabalhar sem paga, e lhe recusa o salário (22, 13)
Em Zacarias (8,10), a falta de pagamento de salário é mesmo uma das imagens do caos social e político.
Voltando ao Deuteronómo para encontrar uma síntese, esta integrando vários elementos, entre eles o medo da punição divina, mas também o mais profundo sentido humanitário, percebendo o quão importante, até psicologicamente falando, pode ser o acto de receber o vencimento merecido e necessário para a sobrevivência (24, 14-15):
Não explorarás o trabalhador pobre e necessitado, seja um dos teus irmãos, ou um dos estrangeiros que estão na tua terra, nas tuas cidades. Dá-lhe o seu salário no próprio dia, antes do por do sol porque ele é pobre e espera-o com ansiedade. Assim, ele não clamará contra ti ao Senhor, e não serás acusado desse pecado.


Terminando, hoje que se celebram os 60 anos sobre a Carta dos Direitos da Humanidade, interessa-nos olhar para um passado distante de dois milhares de anos, pelo menos, e perceber como muito do que hoje desejamos se começou a jogar ai nesse tempo já tão distante.
A dignidade humana nascia de um compromisso entre criaturas que se viam como criadas pelo mesmo Deus e para a mesma Casa.
Numa verdadeira ecologia social, o respeito pelos compromissos, o achar que tudo se regia por leis, o dar apoio ao outro porque esse outro poder vir a ser uma peço importante no todo social, eram formas de equilíbrio.
Mas muito mais, eram formas de equilíbrio nesse ecossistema que eram as cidades hebreias, mas eram ainda formas de equilíbrio que se viam como as únicas com Deus.


[1] Documentados desde, pelo menos, o famoso Código de Hammurabi (c. 1730 a.C.), os juros deveriam rasar valores altíssimos durante toda a Antiguidade. Por exemplo, o Código Justiniano (Corpus Iuri Civilis, de 531 d.C.), majorava a percentagem de lucro a 33% ao ano.

A construção de uma sociedade do medo e da acusação


Uma das grandes questões que se regularmente se colocam, remete-nos para o mundo do tudo ou nada: “O que mudou após o 11 de Setembro?”, perguntamos nós como se a data fosse um momento axial em torno da qual tudo gira.
Mas, olhando bem para o que mudou, vemos que pouco do que se esperava realmente aconteceu. Do lado dos “outros”, não vieram novos mega-atentados (a escala e a espectacularidade foi-se sempre reduzindo). Do lado “ocidental”, parece que nada aprendemos na forma de nos relacionarmos com esses tais “outros”. Veja-se o Afeganistão e o Iraque, para rapidamente se perceber que as lideranças das coligações pouco sabem sobre como se moverem nesses espaços humanos estranhos.
Mas sim, deu-se uma grande alteração. E essa alteração não nos remete apenas para os dados directamente relacionados com o 11 de Setembro e com a Al-Qaeda. É no campo construção da própria imagem que tudo se dá na Europa e nos EUA.
Essa grande alteração dá-se exactamente no momento em que ainda se digeria a saída da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim. O “ocidente”vira-se catapultado, e gostava dessa distinção, para o único modelo a sobreviver, a sociedade vencedora que seria imitada unanimemente; bastaria o tempo para que essa verdade se afirmasse incontestavelmente. A perfeição era óbvia com a queda dos regimes da última grande utopia, o socialismo soviético.
O dia 11 de Setembro de 2001 vem destruir de forma rude e violenta essa verdade que até ao minuto anterior era uma verdade absoluta. Não, afinal, a democracia ocidental não é assim tão desejada por todos… mais, essa repulsa merece os actos mais bárbaros no nosso próprio território. Mais que não estar imunes aos vírus, eles estavam exactamente onde se julgava ser o sucesso do modelo, a imitação: os estudantes estrangeiros aparentemente ocidentalizados poderiam ser o centro da conspiração…
O que nasce com os atentados não é, simplesmente, um clima de guerra, por mais estranha e diferente que ela seja, fora dos parâmetros clássicos. O que nasce aqui é um desgaste, uma erosão do ego de toda uma civilização. O resultado foi simples: de uma sociedade que se olhava como “o fim da História” seguindo Fukuyama, passámos a uma sociedade que se olha através de uma série de lentes de medo. Mais que procurar segurança, o inimigo pode ser qualquer um de nós.
Desde essa data, desde esse evento, que acentuámos os nossos desejos securizantes, as nossas fobias e os nossos medos enquanto civilização e sociedade. Não se trata apenas da segurança nos aeroportos, mas de toda uma forma de encarar o “outro”, seja ele um aparente muçulmano, ou o mais comum dos vizinhos do prédio. O medo tomou conta da nossa cabeça.
Aqui sim, neste campo, deixámos de ser a sociedade da confiança, para sermos a turba dos desconfiados. Remetidos para sistemas de vigilância, os principais alicerces da ideia de Democracia, foram sendo “limados”, adaptados e revistos. Todos somos possíveis acusados de tudo e de mais alguma coisa. No mínimo, hoje somos todos acusados de ter vivido acima das nossas posses.
Em dez anos, a Liberdade já nada tem a ver com o que era em 2001: somos vigiados constantemente e os nossos dados são recolhidos regularmente pelas mais variadas instituições. Até criámos formas de auto-regulação e de auto-censura, como se pode ver nas polémicas em torno das caricaturas de Maomé.
Sobre a Fraternidade, o seu estado está bem patente na dificuldade em a EU ajudar os países com problemas financeiros. Após dezenas de anos de Fundos de Coesão… hoje isso é uma miragem que parece vir de um conto utópico.
E a Igualdade? Nos poucos países do mundo onde se procurava alguma dessa igualdade nas formas gratuitas de certos bens essenciais e cuidados primários, hoje vemos a incapacidade de os manter e a inevitabilidade de os “aligeirar”.
Assim somos nós, dez anos depois. Todos somos possíveis delatores. Todos somos críticos acérrimos, mas quase sempre sem qualquer fundamento. Todos somos, no fundo, paranóicos, quer ao nível do indivíduo, quer ao nível das instituições dos Estados.
Liberdade, Fraternidade, Igualdade… De facto, a Revolução Francesa já lá vai há muitos anos…

Jornal Público,  13 de Setembro de 2011, p. 31.

As ferramentas da islamofobia


…não quero ficar com o peso da perda de muitas vidas na consciência… 

Quando no século XIII se terá escrito pela primeira vez em português a palavra «cristandade», estava a Europa Ocidental num dos mais fervorosos rebates anti-islâmicos. Num quadro de “reconquista-cristã” na Península Ibérica, e com a ênfase quase irracional das Cruzadas, a Europa que se via cada vez mais como cristã, fazia aderir à própria noção de espaço a ideia de religião. A Europa era, por definição, cristã. Assim o foi por muitos séculos, tendo-se vivido um longo período de acalmia à sombra do “paradigma” religioso vigente. Em Portugal, depois das matanças de judeus, de expulsões destes e de muçulmanos, depois de perseguidos os erasmistas e os luteranos, depois de três séculos de Inquisição, no Censos de 1900, menos de 5.000 pessoas se declaravam não católicos.
Hoje em dia o quadro é muito diferente, mas os recentes “atentados” / matanças de Oslo mostram-nos como esta noção de Cristandade ficou enraizada e como ela pode constituir campo privilegiado para que mentes deformadas encetem discursos irracionais e perigosos, construindo narrativas assassinas, tornando, mais uma vez, presentes no nosso quotidiano, aquilo a que desde há várias gerações não se assistia neste nosso “ocidente”: a violência tendo como leit motiv a religião.
Discursos como os de Raimond Panikkar ou  Lanza Del Vasto que, fortemente influenciados por Mahatma Gandhi, reformularam os princípios da não-violência, adoptados por este último, numa linguagem cristã (por exemplo: Lanza Del Vasto, Pèlerinage Aux Sources, Paris, 1943), imprimiram-nos um “novo” olhar sobre o outro, fazendo-nos olvidar o nosso passado religioso sangrento e tortuoso.
Contrariamente a estas linhas filosóficas, a Islamofobia tem crescido imenso na Europa: nas duas últimas décadas, nasceram movimentos, mais ou menos informais, que lançam discursos verdadeiramente incendiários em cidadãos menos capazes de digerir a informação que recebem e de a catalogar no lugar que merecem: lixo.
Sintomático do descontentamento crescente, dos desequilíbrios entre cultura e natureza, da tão falada crise de valores e, por fim, da crise económica, nada melhor do que encontrar um inimigo comum, um objectivo que une em torno de algo, nesta época em que vivemos, tão profícua em fragmentações. Uma suposta invasão islâmica surge como o discurso fácil em tempos de crises variadas e cada vez mais consolidadas.
Quem usa correntemente uma conta de e-mail já recebeu, de certeza, algum dos inúmeros produtos, slides, geralmente, com dados e supostos factos sobre o crescimento do Islão na Europa. São produtos de uma pobreza deprimente, com dados, regra geral, errados, deturpando a realidade, que chegam com uma eficácia demolidora a uma parte muito significativa da nossa população mais reticente à actual mobilidade migratória.
Ainda estamos muito longe de perceber exactamente como enveredou Anders Breivik pela “ideologia” que veio a materializar neste malfadado Julho de 2011. Possa ele considerar-se cristão, ou não; Devamos colar-lhe o rótulo de “fundamentalista”, ou não; O centro da sua reflexão estará, sem dúvida, numa primária islamofobia, exactamente a mesma que encontramos nesses perturbadores e-mails que circulam e nos inundam as caixas de correio ciclicamente.
Mas o mais desconcertante é a adesão com que muita supostamente bem informada gente adere a esses e-mails e os replica pela internet. Em tempos, não muito distantes, dei por mim a responder a quem me enviava essas mensagens. Reunia dados, fazia textos… mas desisti. Para que servia a minha argumentação se o meu “inimigo” era uma fobia, algo que não se combate com métodos racionais.
Certo dia, numa conferência organizada por um amigo, dei por mim frente a frente com alguém que dias antes me enviara uma mensagem dessas. O tema era mesmo o das fobias, dos medos que as religiões criam nos cidadãos. No final da minha “fala”, como se diz no Brasil, ele colocou-me uma questão: “Mas não devemos ter receio de que a Europa venha a ser islamizada?”.
A resposta que lhe dei foi longa. Sem nunca dizer que tinha sido dele a mensagem, contei o episódio que ele protagonizara comigo. Apenas me lembro do que lhe disse no fim: “O que acha que civilizacionalmente avança com o reenvio de e-mails como este que lhe descrevi? Os dados são falsos, o incitamento a uma reacção dura é claro… grande parte dos muçulmanos hoje existentes na Europa são cidadãos europeus como nós. Que lhes fazemos se vingarem as ideias defendidas nesses e-mails? Não são estrangeiros, não os podemos deportar… colocamo-los em campos de concentração? Não sei em que pode desaguar este crescente fluxo anti islâmico. Apenas sei que eu não quero ficar com o peso da perda de muitas vidas na consciência. Quem faz a replicação desses e-mails, mais tarde, ou mais cedo, recolherá esse peso.”

Jornal Público29 de Julho de 2011, p. 30.

... calor ...


Quem me conhece não achará muito estranho...
Em dias como os que correm, sinto o que é ser um pedaço de metal. Sim, um pedaço que sente aproximar-se o momento da fundição, seja ela a primeira ou já uma segunda em virtude da reutilização.Não sei como será por tarde de um naco de ferro, ou mesmo de um tacho de alumínio. Mas o que sei, pela minha prática de tempos quentes, é que o calor se nos entranha de uma forma que chega, mesmo, a dissipar a nossa natureza. Ao contrário do metal, a nós apenas não nos leva a uma plena fluidificação. Mas andamos lá perto.As nossas formas parece que se desagregam. O nosso corpo deixa de reagir. Os líquidos passam a dominar a nossa superfície. O calor é a mãe de todas as deformações a que assistimos. Diz a Física que tudo se passa no campo da energia e da movimentação dos átomos.Pois digo-vos eu que nada disso acontece. Tudo tem a ver com uma dimensão esquisitóide em que o calor suscita em nós o desejo de esgotamento. Se aos átomos é dada maior energia, implicando mais movimento e mais vigor, pois a nós, humanos de átomos também feitos, tudo ocorre da forma inversa: o movimento é tudo o que perdemos.À noite, com uma aragem, uma brisa, a vida regressa ao corpo. Começo a controlar melhor os movimentos. E mesmo o cérebro parece largar, finalmente, a hibernação em que se lançara devido à temperatuda elevada.Nunca mais chega o Inverno....