O início deste ano de 2014 parece estar a consolidar uma
polémica que começara já no ano anterior em torno da circuncisão por motivos
religiosos. A polémica estalara na Alemanha, mas também parece correr na
Dinamarca e noutros países escandinavos que já apresentaram recomendações
contra esta prática no Conselho da Europa.
A base das propostas que defendem a proibição de tal prática
reside na valorização dos direitos da criança em relação à manutenção das
práticas das tradições religiosas. Neste caso, o Judaísmo e o Islão são os
alvos desta onda.
Obviamente que esse campo do Direito deve ser invocado.
Depois de milhares de anos a menosprezar os menores, tratando-os quase sempre
de forma sub-humana, fica “bem” à Europa finalmente colocar as crianças num
lugar de direitos inquestionáveis.
Contudo, esta postura implica uma certa inversão na
responsabilidade educativa e de identidade das crianças. Quais os direitos e os
deveres da progenitura? Onde termina e como se define o que de espiritual os
pais podem transferir para os filhos como parte de uma identidade colectiva, e
quais os limites para as marcas que esses actos podem implicar?
Para a tradição bíblica, seguida por judeus e por
muçulmanos, a circuncisão é a marca da primeira grande aliança entre Deus e o
seu povo, na pessoa de Abraão. Pode-se encarra, sem esforço, que a circuncisão
é a principal marca de identidade ritual nestas religiões. Mais que identidade
religiosa, é identidade cultural e sentido de irmanação com os antepassados e o
que eles representam.
De facto, ao retirar o prepúcio, os pais estão a efectivar
na criação, a repetir o gesto primordial, da aliança que a sua religião
representa. Daqui se percebe que a circuncisão é um acto central e nunca se
pode comparar com a mutilação genital feminina que em nenhuma religião tem foro
minimamente semelhante - para além de a circuncisão não minimizar ou retirar
nenhuma capacidade ao homem, ao passo que o mesmo não se aplica no caso
feminino.
Para os pais, circuncidar é, sim, tornar sagrado aquele
bebé, integrando-o nos laços de uma aliança primordial. E tornar sagrado, no
sentido primeiro da expressão, é sacrificar – sacre facere. É um sacrifício porque torna sagrado.
É claro que a nossa sociedade está numa deriva de protecção
à criança que deve equacionar os limites da acção dos pais a muitos níveis. Mas
a eventual proibição de actos milenares que, feitos segundo as regras
estabelecidas há séculos, em nada fazem perigar a saúde da criança, nem lhe
retiram capacidades na vida adulta, é imagem de um autoritarismo que nega em
absoluto o papel e o lugar dos pais na passagem da sua cultura e identidade.
Mais, este universo de proibições, as do campo religioso,
acabam sempre por definir muito mais que o simples acto que procuram banir.
Neste caso concreto, são dois os grupos religiosos abrangidos: judeus e
muçulmanos.
Num tempo em que tantos movimentos extremistas se revigoram
na Europa com vitórias eleitorias que nos devem deixar alarmados, proibir a
circuncisão tem um nada leve tom a déjà
vu.
O que proibiremos a seguir?
Com Fernando Catarino, na Life&Style do Público, a 6 de Maio passado.
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