terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Jesus com uma romã. Transversalidades de um símbolo









Quase no final do século XV, Botticelli pintava esta linda cena. Na identificação, na legenda, que podemos consultar nos Ufizzi, em Florença, é-nos dito que é a «Virgem da romã»; contudo, é claro que Jesus também segura o referido fruto, como que o recebendo.
           
A simbologia da romã é imensa e o facto de aqui aparecer claramente associada a Jesus mereceria um sem número de paralelos, ligações e análises.
             
Por um lado, é óbvia a ligação deste fruto ao quadro solsticial em que a tradição colocou Jesus a nascer; Não só este fruto é dos poucos que amadurece quando a natureza morre, com este frio que leva a natureza como que a morrer, como a tradição nos leva a comê-lo exactamente até aos Reis, colocando-o na centralidade dos rituais da época.
             
Mas, por outro lado, a ligação a esta natureza que parece desaparecer na exacta medida em que o Sol, no seu momento mais alto, ao meio-dia, indicando o Sul, também faz o seu caminho na linha mais baixa, com menos força, parecendo sucumbir a uma noite cada vez maior, leva-nos para mitos antigos onde, obviamente, a figura de Jesus se foi alimentar simbolicamente.
                 
Este fruto é a melhor metáfora para, quer uma afirmação crística, quer uma justificação eclesial.
           
No segundo caso, o fruto é a própria Igreja, "Una, Santa, Católica", indivisível na sua multiplicidade, e universal. O fruto herdado da decoração do Templo de Salomão, que é também recriado na simbologia do templo maçónico, é aqui a imagem do que Jesus inaugura, seguindo uma estrita leitura da tradição católica.
           
No primeiro caso, a romã é, naturalmente, todo o peso mental das mitologias de morte e ressurreição.  Primeiramente, esta imagem leva-nos para Perséfone e Deméter no mito em que a primeira não consegue sair completamente livre do Mundo Inferior porque comeu, nesse reino de Hades, um pedaço de uma romã. Por isso, eternamente ficaria ligada a esse mundo da morte, vivendo apenas com a sua mãe durante o tempo de frutificação e de pujança da natureza. Sendo neste quadro o fruto dado por Maria, e recebido por Jesus, esta simbologia é ainda mais clara: é a mãe do menino que abre caminho à afirmação salvífica, tal como com Ísis e Hórus, em que o próprio significado do nome da deusa nos encaminha para o facto de ser ela a dar a realeza (Veja-se o nosso texto: "IN SEARCH OF THE LOST PHALLUS: ON THE NEED FOR ISIS TO MATE".
         
Ora, Jesus é exactamente aquele que desce ao Inferno, usando a linguagem cristã, resgatando aqueles que morreram. Neste sentido, o menino Jesus com a romã é um Alfa e um Ómega em potencial. É o princípio através da criança acabada de nascer, e é o seu fim, profeticamente marcado pelo fruto que tem na mão.




sábado, 8 de julho de 2017

PAI | - | FILHO: Dos espelhos e das fotos, de que matéria sou feito eu


Muito mais que o número, a imagem é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta. Talvez por isso exerça sobre nós tamanho poder. Revemo-nos no momento ao espelho, procurando a perfeição; imortalizamos o momento na fotografia, guardando a imagem. Em ambos os casos, somos nutridos pela sensação de exactidão, da veracidade dos contornos que nos são dados a conhecer pelo globo ocular, sem ter em conta que por trás do ver encontra-se o interpretar.
E muito da vida assenta na interpretação que fazemos do que o nosso globo ocular nos faculta generosa, mas caprichosamente. Se o espelho é a possibilidade de um qualquer Narciso se apaixonar por si mesmo, a fotografia é a vontade de parar o tempo, de o congelar num instante como se a vastidão do mundo fosse possível de arrumar num milímetro quadrado.
E nesse milímetro mínimo, não apenas pretendemos dar-lhe foro de tudo e toda a essência nele condensar, como pretendemos, depois, pegar nessa micro-realidade e, tendo-a como perfeita, dar-lhe direitos de soberania sobre tudo o resto.
A  imagem de Nuno Júdice é perfeita: “o teu corpo dobra-se, no espelho da memória, à luz frouxa da lâmpada que nos esconde. Puxo-te para fora da moldura” (“Retrato”). Fazemos a moldura condensando nela um momento e depois queremos ver o mundo através dessa imagem sem tempo. Idealizamos e cegamos, julgando que vemos, guiando na cegueira. É a continuada recriação do pensamento e da teologia que nos leva de Maimónides a Saramago.
Nestes momentos de perda, parece-me que seria muito mais interessante o mundo sem espelhos nem fotografias. Os espelhos, quando apareceram, lá pela Antiguidade, criaram problemas religiosos e de identidade tremendos. Quem estava do lado de lá da superfície brilhante e lisa?
"Espelho meu, diz-me quem é a mais bela?", diz a bruxa-má ao questionar o seu espelho sobre a sua beleza. Vemos o que vemos, mas vemos mais, vemos o que queremos. Se o não vemos, a identidade complica-se – como no caso da bruxa e da Branca de Neve; o desejo é sempre facto de sobreposição em relação ao real.
É de facto irónico que tenha sido o espelho o objecto usado ao longo dos milénios para confrontar, nos ritos de iniciação, o sujeito consigo mesmo, desmascarando a confiança em si mesmo, mostrando que o maior inimigo é a imagem ao espelho… isto é, nós mesmos. Aquele que está no espelho, sou e eu e é também a minha capacidade, ou quase destino, como que inata, de me opor a mim mesmo.
Mas os espelhos não são apenas aquelas peças bonitas, de superfície atraentemente lisa e pura de rugosidades e impurezas. Apela Shakespeare: “Não diga o meu espelho que envelheço“! O garante da juventude é o olhar para o amor, a dedicação e a entrega, que inebriando inibem a visão mais objectiva das rugas, das imagens do tempo e da sua voragem.
O espelho são os outros que nos servem de referencia, através de quem nos vemos nas suas faces. Num sentido edipiano, sempre dei por mim a confirmar a tese mítica de Freud. Mas, por mais estranho que pareça, por vezes dou por mim a ver-me como ao meu pai. Sim, nestes dias em que o Édipo é já o meu filho, e eu o possível ser a “morrer” às suas mãos, sinto cada vez mais uma proximidade assustadora para com o meu pai. Eu sou para o meu filho o que o meu pai foi para mim. Anulando-se as gerações, eu sou, literalmente, o meu pai, vivendo pela primeira vez os desafios dessa posição.
Quantas vezes, ao longo dos dias, percebo-me, até, em posições e expressões que eu recusaria conceber e admitir ainda há pouco tempo. Olho para mim na relação com o meu filho e vejo fotografias do meu pai comigo. Reconheço-me? “Esse que em mim envelhece assomou ao espelho a tentar mostrar que sou eu”, aponta Mia Couto (“Idades Cidades Divindades”); mas quem é quem neste jogo de olhares?
Mais que no meu filho em mudança rápida do início de vida adulta, sou eu que agora muda a uma velocidade estonteante. No ápice de um momento, passei a ser a geração que se segue. Na linha de montagem da memória, ou na cadeia alimentar do tempo, passei para a primeira posição. Obviamente, este eu já é outro. Recrio-me nesta vivência de orfandade.
É essencial o confronto com a imagem da Morte, naquilo que de atemporal ela tem. Desde há mais de quatro milénios que esse confronto se encontra ritualizado na vivênciação de mitos como o de Inanna. E a essencialidade encontra-se plenamente demonstrada no facto de hoje tudo ecoar na nossa mente, no nosso inconsciente colectivo ou subconsciente como se a ciência nada nos tivesse dado de novo.
E, verdade, não deu. Vivenciar nada tem a ver com conhecer. Talvez tenha um pouco a ver com Saber. E, no saber, entramos novamente no que é fundamental. O que é a morte? Seja a do mito recriado em rito, seja a de cada um de nós, em tudo semelhante ao rito em mas em nada igual a qualquer outra morte?
Quem seria na caveira que Hamlet pega e questiona? “Ser ou não ser, eis a questão”. O que é mais nobre perante a condição humana? O pensador responde-nos brutalmente poucos versos abaixo: “Morrer.. dormir: não mais”, ou “Morrer para dormir... é uma consumação”. Reagir ou sucumbir. Desafiar ou resignar, numa luta entre o fado e as moiras e o livre arbítrio, a responsabilidade da acção, mas também a liberdade de dizer Não! De optar e de escolher. Vida ou Morte, eis a questão.
Num acto morre-se e é-se chamado para a Vida. Cada vez dou mais sentido à frase de Saramago, quando dizia que quando morrer, morreriam duas pessoas. Ele e a criança que ele fora. Sim, cada vez me sinto mais longe de mim. Cada vez me sinto menos eu. Ou, talvez, cada vez me sinta menos a criança que fui, a criança que fui sendo cada vez menos, e a criança que quase nada sou.
Contudo, fica uma outra pessoa. Sem um espelho que constantemente usava, fico mais liberto para poder ser eu. É verdade que fica a fotografia idealizada. Mas fico também eu, leitor dessa fotografia, recriador da sua imagem.
Agora sou eu cada vez mais a imagem de um espelho que se transforma em fotografia, até que só haja fotografia e imagem congelada num tempo que não será o meu, mas o de outro transformado em pai, tal como eu agora o fui.
Afinal, sou ambos. Tal como meu pai o foi. Tal como o meu filho o será.

Pai | Filho
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