Muito mais que o número, a imagem é de todas as coisas que há no mundo a menos
exacta. Talvez por isso exerça sobre nós tamanho poder. Revemo-nos no momento
ao espelho, procurando a perfeição; imortalizamos o momento na fotografia,
guardando a imagem. Em ambos os casos, somos nutridos pela sensação de
exactidão, da veracidade dos contornos que nos são dados a conhecer pelo globo ocular,
sem ter em conta que por trás do ver encontra-se o interpretar.
E muito da vida assenta na interpretação que fazemos do que o nosso globo
ocular nos faculta generosa, mas caprichosamente. Se o espelho é a
possibilidade de um qualquer Narciso se apaixonar por si mesmo, a fotografia é
a vontade de parar o tempo, de o congelar num instante como se a vastidão do
mundo fosse possível de arrumar num milímetro quadrado.
E nesse milímetro mínimo, não apenas pretendemos dar-lhe foro de tudo e
toda a essência nele condensar, como pretendemos, depois, pegar nessa
micro-realidade e, tendo-a como perfeita, dar-lhe direitos de soberania sobre
tudo o resto.
A imagem de Nuno Júdice é perfeita: “o teu corpo dobra-se, no espelho da memória, à luz frouxa da lâmpada que nos esconde. Puxo-te para fora da moldura” (“Retrato”). Fazemos a moldura condensando nela um momento e depois queremos
ver o mundo através dessa imagem sem tempo. Idealizamos e cegamos, julgando que
vemos, guiando na cegueira. É a continuada recriação do pensamento e da teologia
que nos leva de Maimónides a Saramago.
Nestes momentos de perda, parece-me que seria muito mais interessante o
mundo sem espelhos nem fotografias. Os espelhos, quando apareceram, lá pela
Antiguidade, criaram problemas religiosos e de identidade tremendos. Quem
estava do lado de lá da superfície brilhante e lisa?
"Espelho meu, diz-me quem é a mais bela?", diz a bruxa-má ao
questionar o seu espelho sobre a sua beleza. Vemos o que vemos, mas vemos mais,
vemos o que queremos. Se o não vemos, a identidade complica-se – como no caso
da bruxa e da Branca de Neve; o desejo é sempre facto de sobreposição em
relação ao real.
É de facto irónico que tenha sido o espelho o objecto usado ao longo dos
milénios para confrontar, nos ritos de iniciação, o sujeito consigo mesmo, desmascarando
a confiança em si mesmo, mostrando que o maior inimigo é a imagem ao espelho…
isto é, nós mesmos. Aquele que está no espelho, sou e eu e é também a minha capacidade,
ou quase destino, como que inata, de me opor a mim mesmo.
Mas os espelhos não são apenas aquelas peças bonitas, de superfície
atraentemente lisa e pura de rugosidades e impurezas. Apela Shakespeare: “Não
diga o meu espelho que envelheço“! O garante da juventude é o olhar para o
amor, a dedicação e a entrega, que inebriando inibem a visão mais objectiva das
rugas, das imagens do tempo e da sua voragem.
O espelho são os outros que nos servem de referencia, através de quem nos
vemos nas suas faces. Num sentido edipiano, sempre dei por mim a confirmar a
tese mítica de Freud. Mas, por mais estranho que pareça, por vezes dou por mim
a ver-me como ao meu pai. Sim, nestes dias em que o Édipo é já o meu filho, e
eu o possível ser a “morrer” às suas mãos, sinto cada vez mais uma proximidade
assustadora para com o meu pai. Eu sou para o meu filho o que o meu pai foi
para mim. Anulando-se as gerações, eu sou, literalmente, o meu pai, vivendo
pela primeira vez os desafios dessa posição.
Quantas vezes, ao longo dos dias, percebo-me, até, em posições e expressões
que eu recusaria conceber e admitir ainda há pouco tempo. Olho para mim na
relação com o meu filho e vejo fotografias do meu pai comigo. Reconheço-me? “Esse que em mim envelhece assomou ao espelho a tentar mostrar que sou eu”, aponta Mia Couto (“Idades Cidades Divindades”); mas quem é quem neste jogo de olhares?
Mais que no meu filho em mudança rápida do início de vida adulta, sou eu
que agora muda a uma velocidade estonteante. No ápice de um momento, passei a
ser a geração que se segue. Na linha de montagem da memória, ou na cadeia
alimentar do tempo, passei para a primeira posição. Obviamente, este eu já é
outro. Recrio-me nesta vivência de orfandade.
É essencial o confronto com a imagem da Morte, naquilo que de atemporal ela
tem. Desde há mais de quatro milénios que esse confronto se encontra ritualizado
na vivênciação de mitos como o de Inanna. E a essencialidade encontra-se plenamente
demonstrada no facto de hoje tudo ecoar na nossa mente, no nosso inconsciente
colectivo ou subconsciente como se a ciência nada nos tivesse dado de novo.
E, verdade, não deu. Vivenciar nada tem a ver com conhecer. Talvez tenha um
pouco a ver com Saber. E, no saber, entramos novamente no que é fundamental. O
que é a morte? Seja a do mito recriado em rito, seja a de cada um de nós, em
tudo semelhante ao rito em mas em nada igual a qualquer outra morte?
Quem seria na caveira que Hamlet pega e questiona? “Ser ou não ser, eis a
questão”. O que é mais nobre perante a condição humana? O pensador responde-nos
brutalmente poucos versos abaixo: “Morrer.. dormir: não mais”, ou “Morrer para
dormir... é uma consumação”. Reagir ou sucumbir. Desafiar ou resignar, numa
luta entre o fado e as moiras e o livre arbítrio, a responsabilidade da acção,
mas também a liberdade de dizer Não! De optar e de escolher. Vida ou Morte, eis
a questão.
Num acto morre-se e é-se chamado para a Vida. Cada vez dou mais sentido à
frase de Saramago, quando dizia que quando morrer, morreriam duas pessoas. Ele
e a criança que ele fora. Sim, cada vez me sinto mais longe de mim. Cada vez me
sinto menos eu. Ou, talvez, cada vez me sinta menos a criança que fui, a
criança que fui sendo cada vez menos, e a criança que quase nada sou.
Contudo, fica uma outra pessoa. Sem um espelho
que constantemente usava, fico mais liberto para poder ser eu. É verdade que
fica a fotografia idealizada. Mas fico também eu, leitor dessa fotografia,
recriador da sua imagem.
Agora sou eu cada vez mais a imagem de um
espelho que se transforma em fotografia, até que só haja fotografia e imagem
congelada num tempo que não será o meu, mas o de outro transformado em pai, tal
como eu agora o fui.
Afinal, sou ambos. Tal como meu pai o foi. Tal
como o meu filho o será.
Pai | Filho
...........................................
.......................................
...................................
...............................
...........................
.......................
...................
...............
...........
.......
...
.......................................
...................................
...............................
...........................
.......................
...................
...............
...........
.......
...