sábado, 26 de maio de 2018

Egipto - Dia 2 - Saqqara: Vida e Morte



Dia 2

Saqqara: Morte e Vida

Três hora foi o que acabei por dormir nesta primeira noite. Despertado, corri à janela para ver se o que tinha vislumbrado na noite anterior era mesmo verdadeiro. E sim, era: o meu quarto tinha janela para a piscina e para as pirâmides do Planalto de Guiza. Não foi aqui que tive, pela primeira vez, a sensação de estar a profanar. Nesta viagem foram várias as vezes em que essa sensação me tolheu o espírito.

A manhã começou por um dos pontos tradicionais nestes circuitos. A minha viagem tem muitos pontos nada frequentados pelos turistas, mas o primeiro é um dos clássicos. Fomos à antiga Mênfis, a um espaço aquase todo a céu aberto onde se acumulam estátuas, estelas, sarcófagos, de tudo um pouco.

Mas, realmente, não fomos à famosa cidade das “muralhas brancas”. Teremos passado vários metros acima das suas ruínas, no actual casario egípcio que foi moldando a paisagem numa continuidade de milénios. O sol era já abrasador e nem nove horas eram, quando o autocarro nos colocou à entrada do recinto museológico.

O ponto fundamental desta visita era a colossal estátua de Ramsés II, com mais de 13 metros de comprimentos e uma enormidade de toneladas que inviabilizou o seu transporte para um museu. Todas as peças deste complexo estão ao ar livre, excepto este imenso monarca que foi enclausurado dentro de um edifício de primeiro andar, de cujas varandas podemos admirar a obra excepcional, seja em volume, seja em qualidade escultórica.

Este foi o primeiro contacto com o “tempo” egípcio. O que implicou, em termos de investimento de tempo, fazer o que eu tinha ali à minha frente? Quantos mestres? Quantos aprendizes? Que “máquina” tinha sido montada para eu um trabalho a tantas mãos tivesse a perfeição que eu vislumbrava…E isto em plena Idade do Bronze, meados do segundo milénio antes de Jesus ter nascido, muito tempo antes de perfeitos e exactos instrumentos de medida, de calculo e de desbaste da dura pedra.

E o tempo, no Egipto é, para mim, o centro de tudo, o que explica e nos embasbaca, o que nos deixa sem palavras. E uma necrópole, a “cidade dos mortos”, como a palavra indica, é nas margens do Nilo o expoente da noção de tempo: a eternidade.

Uma pirâmide é, à letra, a “casa de eternidade”, feita em pedra por isso mesmo, com todas as características para ser uma morada eterna para o seu ocupante, um rei, o deus Hórus. Saqqara tem as primeiras pirâmides, especialmente a famosa pirâmide escalonada de Djoser, o mítico monarca que tinha como seu vizir o ainda mais mítico Imhotep, arquitecto e médico, posteriormente divinizado.

A passagem de uma simples estrutura paralelepipédica que enquadrava e cobria uma estrutura escavada no solo para uma imensa colina artificial é a marca de uma mudança religiosa tremenda. Sem deixar a herança ctónica, a pirâmide afirma o mundo dos astros, seja o Sol e as suas coordenadas, sejam as estrelas, especialmente Sótis.

Como bónus, não previsto na visita, depois da visita a uma mastaba de um alto funcionário, desci ao interior da pirâmide de Teti. Se a estrutura externa já pouco faz lembrar uma pirâmide, de tão deteriorada está a pedra, típico nas estruturas funerárias desta época já mais tardia do Império Antigo, o interior, feito de grandes monólitos, está em perfeitas condições.

A descida, acentuada, deixava as minhas costas viradas a Norte, embrenhando-me para o centro da terra no sentido do Sul. Desci sempre agachado, com o corpo dobrado, sem me puder erguer. Terminada a descida, um longo corredor mantinha a direcção, e continuava a obrigar-me a uma posição de submissão, de respeito, de reverencia. E foi assim que cheguei à câmara onde, a Ocidente, debaixo de um céu estrelado, ainda repousa o imenso sarcófago descoberto em 1882 por Maspero.

A câmara funerária deste monarca é a segunda que apresenta os chamados Textos das Pirâmides, um conjunto de textos de instrução e encantatórios para ajudar o defunto monarca na sua jornada até se transformar num Osíris. Imagem de uma certa democratização dos direitos após a morte, pelo menos ao largo grupo de altos funcionários, o monarca perde estatuto e já não tem a mortalidade como automática, precisa de ajuda.

Só aqui, depois de me erguer, percebi que, de facto, estava no interior de uma pirâmide, alguns metros abaixo do nível do solo, e com uns milhares de toneladas de pedra por cima. Mas o espaço era leve, simples e harmonioso. Talvez a sensação de bem-estar se devesse ao simples facto de o lugar ser fresco, por oposição aos tórridos 40º que deixara uns minutos antes. Mas não, não era isso ou, pelo menos, não era só isso.

Já em Ugarit experimentara a saída de um túmulo, mesmo ao lado do Templo de Baal, o deus que tem como centro da sua vida mitológica a morte a ressurreição. Não sei se na voragem da guerra na Síria a actual Ras Shamra foi poupada e as ruínas de Ugarit preservadas. Não sei se lá regressarei alguma vez. Mas acho que fui a Ugarit novo de mais. Só agora, com outra compreensão e vivência da intensidade e emotividade dos ritos, compreendo a profunda relação entre os textos mitológicos a forma como se viviam as ideias de Morte e de Vida.

Hoje, na pirâmide de Tetis, a simbologia da Morte já me diz muito mais como acto quase profilático da Vida. Não se fica imune ao percorrer os gestos da saída de um túmulo. Ou, melhor, parafraseando Saramago, se se sair imune, “não merece que se lhe explique segunda”, tanto mais que o vivenciar não é do campo do conhecer, não se explica: vive-se, sente-se. Ou não – e aí, nada há a fazer, a não ser “turismo”, passando pela vida sem Viver.


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