sábado, 26 de maio de 2018

Egipto - Dia 2 - Saqqara: Vida e Morte



Dia 2

Saqqara: Morte e Vida

Três hora foi o que acabei por dormir nesta primeira noite. Despertado, corri à janela para ver se o que tinha vislumbrado na noite anterior era mesmo verdadeiro. E sim, era: o meu quarto tinha janela para a piscina e para as pirâmides do Planalto de Guiza. Não foi aqui que tive, pela primeira vez, a sensação de estar a profanar. Nesta viagem foram várias as vezes em que essa sensação me tolheu o espírito.

A manhã começou por um dos pontos tradicionais nestes circuitos. A minha viagem tem muitos pontos nada frequentados pelos turistas, mas o primeiro é um dos clássicos. Fomos à antiga Mênfis, a um espaço aquase todo a céu aberto onde se acumulam estátuas, estelas, sarcófagos, de tudo um pouco.

Mas, realmente, não fomos à famosa cidade das “muralhas brancas”. Teremos passado vários metros acima das suas ruínas, no actual casario egípcio que foi moldando a paisagem numa continuidade de milénios. O sol era já abrasador e nem nove horas eram, quando o autocarro nos colocou à entrada do recinto museológico.

O ponto fundamental desta visita era a colossal estátua de Ramsés II, com mais de 13 metros de comprimentos e uma enormidade de toneladas que inviabilizou o seu transporte para um museu. Todas as peças deste complexo estão ao ar livre, excepto este imenso monarca que foi enclausurado dentro de um edifício de primeiro andar, de cujas varandas podemos admirar a obra excepcional, seja em volume, seja em qualidade escultórica.

Este foi o primeiro contacto com o “tempo” egípcio. O que implicou, em termos de investimento de tempo, fazer o que eu tinha ali à minha frente? Quantos mestres? Quantos aprendizes? Que “máquina” tinha sido montada para eu um trabalho a tantas mãos tivesse a perfeição que eu vislumbrava…E isto em plena Idade do Bronze, meados do segundo milénio antes de Jesus ter nascido, muito tempo antes de perfeitos e exactos instrumentos de medida, de calculo e de desbaste da dura pedra.

E o tempo, no Egipto é, para mim, o centro de tudo, o que explica e nos embasbaca, o que nos deixa sem palavras. E uma necrópole, a “cidade dos mortos”, como a palavra indica, é nas margens do Nilo o expoente da noção de tempo: a eternidade.

Uma pirâmide é, à letra, a “casa de eternidade”, feita em pedra por isso mesmo, com todas as características para ser uma morada eterna para o seu ocupante, um rei, o deus Hórus. Saqqara tem as primeiras pirâmides, especialmente a famosa pirâmide escalonada de Djoser, o mítico monarca que tinha como seu vizir o ainda mais mítico Imhotep, arquitecto e médico, posteriormente divinizado.

A passagem de uma simples estrutura paralelepipédica que enquadrava e cobria uma estrutura escavada no solo para uma imensa colina artificial é a marca de uma mudança religiosa tremenda. Sem deixar a herança ctónica, a pirâmide afirma o mundo dos astros, seja o Sol e as suas coordenadas, sejam as estrelas, especialmente Sótis.

Como bónus, não previsto na visita, depois da visita a uma mastaba de um alto funcionário, desci ao interior da pirâmide de Teti. Se a estrutura externa já pouco faz lembrar uma pirâmide, de tão deteriorada está a pedra, típico nas estruturas funerárias desta época já mais tardia do Império Antigo, o interior, feito de grandes monólitos, está em perfeitas condições.

A descida, acentuada, deixava as minhas costas viradas a Norte, embrenhando-me para o centro da terra no sentido do Sul. Desci sempre agachado, com o corpo dobrado, sem me puder erguer. Terminada a descida, um longo corredor mantinha a direcção, e continuava a obrigar-me a uma posição de submissão, de respeito, de reverencia. E foi assim que cheguei à câmara onde, a Ocidente, debaixo de um céu estrelado, ainda repousa o imenso sarcófago descoberto em 1882 por Maspero.

A câmara funerária deste monarca é a segunda que apresenta os chamados Textos das Pirâmides, um conjunto de textos de instrução e encantatórios para ajudar o defunto monarca na sua jornada até se transformar num Osíris. Imagem de uma certa democratização dos direitos após a morte, pelo menos ao largo grupo de altos funcionários, o monarca perde estatuto e já não tem a mortalidade como automática, precisa de ajuda.

Só aqui, depois de me erguer, percebi que, de facto, estava no interior de uma pirâmide, alguns metros abaixo do nível do solo, e com uns milhares de toneladas de pedra por cima. Mas o espaço era leve, simples e harmonioso. Talvez a sensação de bem-estar se devesse ao simples facto de o lugar ser fresco, por oposição aos tórridos 40º que deixara uns minutos antes. Mas não, não era isso ou, pelo menos, não era só isso.

Já em Ugarit experimentara a saída de um túmulo, mesmo ao lado do Templo de Baal, o deus que tem como centro da sua vida mitológica a morte a ressurreição. Não sei se na voragem da guerra na Síria a actual Ras Shamra foi poupada e as ruínas de Ugarit preservadas. Não sei se lá regressarei alguma vez. Mas acho que fui a Ugarit novo de mais. Só agora, com outra compreensão e vivência da intensidade e emotividade dos ritos, compreendo a profunda relação entre os textos mitológicos a forma como se viviam as ideias de Morte e de Vida.

Hoje, na pirâmide de Tetis, a simbologia da Morte já me diz muito mais como acto quase profilático da Vida. Não se fica imune ao percorrer os gestos da saída de um túmulo. Ou, melhor, parafraseando Saramago, se se sair imune, “não merece que se lhe explique segunda”, tanto mais que o vivenciar não é do campo do conhecer, não se explica: vive-se, sente-se. Ou não – e aí, nada há a fazer, a não ser “turismo”, passando pela vida sem Viver.


Egipto - Dia 1 - Antes


Dia 1
Antes

Para além de libertador, viajar tem o seu quê de condenação, de irredutível e de irreversível. Saímos do nosso espaço, do nosso gerir do tempo e relações. No aeroporto, numa loja de produtos supostamente nacionais, que desenvolvem toda a uma imagem em torno de lugar comuns de uma identidade, tomo o meu “último” café, condenado a só sentir novamente o aroma de um Delta daqui a dez dias. Até lá, apesar das possíveis doses de cafeína, nada se lhe comparará, por mais que seja única a experiência de estar no Egipto. É assim. Somos muito corpo, sabores e vícios.

Antes da vinda para o aeroporto, fui almoçar com os meus filhos. No intervalo das aulas, lá fomos a um restaurante junto à escola, no Campo Grande. Veio o Gonçalo, a Raquel a Matilde: todos. Foi uma forma de dizer “até logo”, de estar junto ao mais importante. A Zé estava a trabalhar; fiquei logo com saudades! Não tomei café.

Às previstas 14 horas, o grupo estava já reunido no sítio combinado. O Francisco, atarefado, organizava, orientava. Mal sabia que o primeiro voo se iria atrasar imenso, obrigando o grupo a um verdadeiro voo em pleno aeroporto de Frankfurt, tentando não perder o avião para o Cairo.

O Gonçalo perguntou-me ao almoço se eu estava muito entusiasmado. É verdade, chorei a primeira vez que fui a Tróia. O Egipto é para mim bastante diferente. Se o essencial de Tróia se encontra exactamente na época que me fascina, na passagem da Idade do Bronze para o Ferro, no final dos grandes impérios do segundo milénio, o Egipto é isso, e muito mais, é tudo o mais.

No Egipto, como os gregos tão sabiamente intuíram, tudo nasceu. Não tudo, sim, mas muito do que é fundamental na construção do que somos. Da ideia de conhecimento, do culto e da religião em torno da morte como salvação, à medicina e à técnica, quanto de egípcios nós temos na forma de organizar e de ler o mundo.

Quase tudo o que de sentido iniciático temos, elo Egipto foi inspirado. Toda a mitologia que suporta a transcendentalização do indivíduo, tornando-o deus, dando-lhe a imortalidade, veio desse vale próspero do Nilo.

Contudo, muito se perdeu. A ideia de pecado, a noção de que a humanidade é falha, de que os prazeres são para serem subjugados a uma vontade que os aniquila, ganhou, apesar de o Egipto defender exactamente o oposto. E quanto somos herdeiros dessa linha que nos continua a desgraçar nos divãs dos psicólogos!

Sim, estou entusiasmado. Mas, acima de tudo, estou assombrado. Não sei como irei reagir em certos lugares, tal como não sabia que iria chorar ao chegar junto das muralhas de Troia.


terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Jesus com uma romã. Transversalidades de um símbolo









Quase no final do século XV, Botticelli pintava esta linda cena. Na identificação, na legenda, que podemos consultar nos Ufizzi, em Florença, é-nos dito que é a «Virgem da romã»; contudo, é claro que Jesus também segura o referido fruto, como que o recebendo.
           
A simbologia da romã é imensa e o facto de aqui aparecer claramente associada a Jesus mereceria um sem número de paralelos, ligações e análises.
             
Por um lado, é óbvia a ligação deste fruto ao quadro solsticial em que a tradição colocou Jesus a nascer; Não só este fruto é dos poucos que amadurece quando a natureza morre, com este frio que leva a natureza como que a morrer, como a tradição nos leva a comê-lo exactamente até aos Reis, colocando-o na centralidade dos rituais da época.
             
Mas, por outro lado, a ligação a esta natureza que parece desaparecer na exacta medida em que o Sol, no seu momento mais alto, ao meio-dia, indicando o Sul, também faz o seu caminho na linha mais baixa, com menos força, parecendo sucumbir a uma noite cada vez maior, leva-nos para mitos antigos onde, obviamente, a figura de Jesus se foi alimentar simbolicamente.
                 
Este fruto é a melhor metáfora para, quer uma afirmação crística, quer uma justificação eclesial.
           
No segundo caso, o fruto é a própria Igreja, "Una, Santa, Católica", indivisível na sua multiplicidade, e universal. O fruto herdado da decoração do Templo de Salomão, que é também recriado na simbologia do templo maçónico, é aqui a imagem do que Jesus inaugura, seguindo uma estrita leitura da tradição católica.
           
No primeiro caso, a romã é, naturalmente, todo o peso mental das mitologias de morte e ressurreição.  Primeiramente, esta imagem leva-nos para Perséfone e Deméter no mito em que a primeira não consegue sair completamente livre do Mundo Inferior porque comeu, nesse reino de Hades, um pedaço de uma romã. Por isso, eternamente ficaria ligada a esse mundo da morte, vivendo apenas com a sua mãe durante o tempo de frutificação e de pujança da natureza. Sendo neste quadro o fruto dado por Maria, e recebido por Jesus, esta simbologia é ainda mais clara: é a mãe do menino que abre caminho à afirmação salvífica, tal como com Ísis e Hórus, em que o próprio significado do nome da deusa nos encaminha para o facto de ser ela a dar a realeza (Veja-se o nosso texto: "IN SEARCH OF THE LOST PHALLUS: ON THE NEED FOR ISIS TO MATE".
         
Ora, Jesus é exactamente aquele que desce ao Inferno, usando a linguagem cristã, resgatando aqueles que morreram. Neste sentido, o menino Jesus com a romã é um Alfa e um Ómega em potencial. É o princípio através da criança acabada de nascer, e é o seu fim, profeticamente marcado pelo fruto que tem na mão.




sábado, 8 de julho de 2017

PAI | - | FILHO: Dos espelhos e das fotos, de que matéria sou feito eu


Muito mais que o número, a imagem é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta. Talvez por isso exerça sobre nós tamanho poder. Revemo-nos no momento ao espelho, procurando a perfeição; imortalizamos o momento na fotografia, guardando a imagem. Em ambos os casos, somos nutridos pela sensação de exactidão, da veracidade dos contornos que nos são dados a conhecer pelo globo ocular, sem ter em conta que por trás do ver encontra-se o interpretar.
E muito da vida assenta na interpretação que fazemos do que o nosso globo ocular nos faculta generosa, mas caprichosamente. Se o espelho é a possibilidade de um qualquer Narciso se apaixonar por si mesmo, a fotografia é a vontade de parar o tempo, de o congelar num instante como se a vastidão do mundo fosse possível de arrumar num milímetro quadrado.
E nesse milímetro mínimo, não apenas pretendemos dar-lhe foro de tudo e toda a essência nele condensar, como pretendemos, depois, pegar nessa micro-realidade e, tendo-a como perfeita, dar-lhe direitos de soberania sobre tudo o resto.
A  imagem de Nuno Júdice é perfeita: “o teu corpo dobra-se, no espelho da memória, à luz frouxa da lâmpada que nos esconde. Puxo-te para fora da moldura” (“Retrato”). Fazemos a moldura condensando nela um momento e depois queremos ver o mundo através dessa imagem sem tempo. Idealizamos e cegamos, julgando que vemos, guiando na cegueira. É a continuada recriação do pensamento e da teologia que nos leva de Maimónides a Saramago.
Nestes momentos de perda, parece-me que seria muito mais interessante o mundo sem espelhos nem fotografias. Os espelhos, quando apareceram, lá pela Antiguidade, criaram problemas religiosos e de identidade tremendos. Quem estava do lado de lá da superfície brilhante e lisa?
"Espelho meu, diz-me quem é a mais bela?", diz a bruxa-má ao questionar o seu espelho sobre a sua beleza. Vemos o que vemos, mas vemos mais, vemos o que queremos. Se o não vemos, a identidade complica-se – como no caso da bruxa e da Branca de Neve; o desejo é sempre facto de sobreposição em relação ao real.
É de facto irónico que tenha sido o espelho o objecto usado ao longo dos milénios para confrontar, nos ritos de iniciação, o sujeito consigo mesmo, desmascarando a confiança em si mesmo, mostrando que o maior inimigo é a imagem ao espelho… isto é, nós mesmos. Aquele que está no espelho, sou e eu e é também a minha capacidade, ou quase destino, como que inata, de me opor a mim mesmo.
Mas os espelhos não são apenas aquelas peças bonitas, de superfície atraentemente lisa e pura de rugosidades e impurezas. Apela Shakespeare: “Não diga o meu espelho que envelheço“! O garante da juventude é o olhar para o amor, a dedicação e a entrega, que inebriando inibem a visão mais objectiva das rugas, das imagens do tempo e da sua voragem.
O espelho são os outros que nos servem de referencia, através de quem nos vemos nas suas faces. Num sentido edipiano, sempre dei por mim a confirmar a tese mítica de Freud. Mas, por mais estranho que pareça, por vezes dou por mim a ver-me como ao meu pai. Sim, nestes dias em que o Édipo é já o meu filho, e eu o possível ser a “morrer” às suas mãos, sinto cada vez mais uma proximidade assustadora para com o meu pai. Eu sou para o meu filho o que o meu pai foi para mim. Anulando-se as gerações, eu sou, literalmente, o meu pai, vivendo pela primeira vez os desafios dessa posição.
Quantas vezes, ao longo dos dias, percebo-me, até, em posições e expressões que eu recusaria conceber e admitir ainda há pouco tempo. Olho para mim na relação com o meu filho e vejo fotografias do meu pai comigo. Reconheço-me? “Esse que em mim envelhece assomou ao espelho a tentar mostrar que sou eu”, aponta Mia Couto (“Idades Cidades Divindades”); mas quem é quem neste jogo de olhares?
Mais que no meu filho em mudança rápida do início de vida adulta, sou eu que agora muda a uma velocidade estonteante. No ápice de um momento, passei a ser a geração que se segue. Na linha de montagem da memória, ou na cadeia alimentar do tempo, passei para a primeira posição. Obviamente, este eu já é outro. Recrio-me nesta vivência de orfandade.
É essencial o confronto com a imagem da Morte, naquilo que de atemporal ela tem. Desde há mais de quatro milénios que esse confronto se encontra ritualizado na vivênciação de mitos como o de Inanna. E a essencialidade encontra-se plenamente demonstrada no facto de hoje tudo ecoar na nossa mente, no nosso inconsciente colectivo ou subconsciente como se a ciência nada nos tivesse dado de novo.
E, verdade, não deu. Vivenciar nada tem a ver com conhecer. Talvez tenha um pouco a ver com Saber. E, no saber, entramos novamente no que é fundamental. O que é a morte? Seja a do mito recriado em rito, seja a de cada um de nós, em tudo semelhante ao rito em mas em nada igual a qualquer outra morte?
Quem seria na caveira que Hamlet pega e questiona? “Ser ou não ser, eis a questão”. O que é mais nobre perante a condição humana? O pensador responde-nos brutalmente poucos versos abaixo: “Morrer.. dormir: não mais”, ou “Morrer para dormir... é uma consumação”. Reagir ou sucumbir. Desafiar ou resignar, numa luta entre o fado e as moiras e o livre arbítrio, a responsabilidade da acção, mas também a liberdade de dizer Não! De optar e de escolher. Vida ou Morte, eis a questão.
Num acto morre-se e é-se chamado para a Vida. Cada vez dou mais sentido à frase de Saramago, quando dizia que quando morrer, morreriam duas pessoas. Ele e a criança que ele fora. Sim, cada vez me sinto mais longe de mim. Cada vez me sinto menos eu. Ou, talvez, cada vez me sinta menos a criança que fui, a criança que fui sendo cada vez menos, e a criança que quase nada sou.
Contudo, fica uma outra pessoa. Sem um espelho que constantemente usava, fico mais liberto para poder ser eu. É verdade que fica a fotografia idealizada. Mas fico também eu, leitor dessa fotografia, recriador da sua imagem.
Agora sou eu cada vez mais a imagem de um espelho que se transforma em fotografia, até que só haja fotografia e imagem congelada num tempo que não será o meu, mas o de outro transformado em pai, tal como eu agora o fui.
Afinal, sou ambos. Tal como meu pai o foi. Tal como o meu filho o será.

Pai | Filho
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sábado, 11 de junho de 2016

Em tempos de martírios, urge revisitar os «Mártires de Marrocos»


Tal como sucede para os mártires dos primeiros séculos do Cristianismo, onde a natureza por vezes verdadeiramente exótica dos milagres em torno de uma morte que é sempre um desafio ao “infiel”, também no caso destes mártires cristãos do século XIII, a procura do martírio parece ser mesmo o desígnio que os frades procuravam, apesar das inúmeras possibilidades de vida que lhes foram dadas, mesmo em quadros de verdadeira procura de um choque religioso que, obviamente, nunca terminaria bem.

Contudo, todos os dados e factos que nos chegaram pelas tradições escritas, por mais sólidos que ao longo dos séculos tenham parecido, movimentando crentes, fé e piedade, muito pouco parece ser factológico. É um campo de mito e de lenda onde se espraiam os desejos e as preocupações religiosas de uma época de extremos onde a busca da morte era muitas vezes a única via para um quadro quotidiano positivo, um sentido superior para a vida.

De que tenhamos conhecimento, a primeira versão desta complexa lenda dos mártires de Marrocos foi redigida ainda em vida de S. Francisco, intitulada Chronica Fratis Iordani a Iano, incluída na Analecta Franciscana. Terá sido no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra que se desenvolveram obras hagiográficas sobre os mártires franciscanos, surgindo documentos de devoção que relatavam os seus milagres. A sistematização deste grupo de lendas é de 1568, quando foi redigida a obra Tratado da Vida e Martírio dos Cinco Mártires de Marrocos, de João Álvares, uma adaptação portuguesa da Legenda Martyrum Marochii (obra de c. 1476).

O imaginário cristão foi tão forte em torno das tradições dos Mártires de Marrocos, que rapidamente a iconografia se desenvolveu. As primeiras obras artísticas dedicadas a este martírio também têm origem conimbricense, só depois passando a ser um assunto utilizado pelos artistas de todo o País, quer em quadros e esculturas, quer em gravuras ou peças de ourivesaria, proporcionando um dos temas mais recorrentes na iconografia portuguesa.

Contudo, os Santos Mártires de Marrocos não são, de facto, naturais de Portugal. São cinco frades italianos da região da Toscânia, de seu nome: Frei Berardo, pregador e arabista, Frei Otto, sacerdote, Frei Pedro, diácono, e Frei Adjuto e Frei Acúrsio, frades leigos, a que acrescia Frei Vidal, que presidia a missão.

A origem da missão encontra-se na II Assembleia Geral da Ordem Franciscana em Assis, onde Francisco de Assis elegeu esses frades como missionários em Marrocos. De Itália saíram os seis missionários rumo à Ibéria, de onde pretendiam partir para Marrocos.

E é logo nos primeiros momentos que a missão ganha contornos inesperados: em Aragão, Frei Vidal adoece gravemente e fica impossibilitado de prosseguir junto com os seus companheiros. Sem outra solução, nomeia para o substituir na presidência da missão Frei Berardo. Debilitado, Frei Vidal acabaria por morrer sem a coroa do martírio, poucos dias após a notícia da morte dos cinco frades.

Seguindo caminho, os missionários dirigem-se a Coimbra, onde D. Urraca lhes dá guarida. Num misto de fé e de misticismo, a rainha suplica aos frades que lhe revelem o momento da sua morte. Relutantes, acabam por predizer que a vida de D. Urraca apenas chegaria ao seu termo quando de Marrocos os cristãos trouxessem a Coimbra os seus corpos martirizados.

Nesta estadia em Coimbra, um jovem, Fernando de Bulhões, que, mais tarde, será outro grande santo português (Santo António) terá ouvido as suas prédicas no mosteiro de Santa Cruz, episódio que em muito lhe influenciou a vida.

Pararam ainda em Alenquer, vila que recebera foral em 1212 de D. Sancha (beatificada, com as suas irmãs Teresa e Mafalda, em 1705), filha de D. Sancho I. Aí, a princesa, irmã do rei D. Afonso II, os dotou de víveres e trajes de mercadores, com os quais se deveriam disfarçar quando chegassem a Sevilha.

Iniciando uma postura de assumida afronta, denotando a crença na posse do Espírito Santo que, não apenas os livraria de qualquer medo, como os dotaria das palavras que levariam à imediata conversão dos mouros. Sem medo algum, trocaram as vestes, generosamente ofertadas por D. Sancha, pelo hábito franciscano e, assim vestidos, apresentaram-se na mesquita de Sevilha, onde iniciaram a sua pregação diante de uma multidão de muçulmanos. Julgando-os loucos, foram escorraçados da mesquita.

Frei Berardo e os companheiros conseguem, supostamente, apresentar os fundamentos da doutrina cristã perante Abu El-Ola, que governava Sevilha em nome de El-Mansur. Ainda sem terem passado ao Norte de África, os missionários são colocados perante a escolha da vida ou da morte. Obstinados na sua vontade, El-Ola obrigou-os a escolher entre renegar a fé ou serem mortos. Os frades optaram pelo martírio, se bem que ainda fosse nesta data que o conseguissem. Foram poupados e levados como prisioneiros para a monumental atalaia de defesa da cidade junto ao Guadalquivir, mais tarde batizada como Torre del Oro.

Os missionários em nada desistiram do seu intento, e mesmo prisioneiros, continuaram a tentar converter “infiéis”. Perante esta temerária atitude, foram encarcerados nos pisos mais isolados e profundos da fortaleza, e sujeitos à fome e a maus tratos físicos.

Impressionado com a situação e sentindo-se incapaz, pelos seus esforços, de os fazer abjurar da fé no Cristianismo, Abu El-Ola deu ordem para que fossem entregues a um fidalgo castelhano, Pedro Fernandes de Castro, que embarcava para Marrocos.

Em Marrocos, foram levados ao Infante D. Pedro de Portugal, filho de D. Sancho I, que, devido a conflitos com o irmão, D. Afonso II, se havia refugiado junto do Miramolim. D. Pedro, que nos referidos conflitos tomara partido de D. Sancha, que já acolhera estes mártires em Alenquer, deu-lhes hospedagem e ouviu a sua história. Conhecedor de Marrocos, onde estava ao serviço do Miramolim almóada, aconselhou os frades a não pregarem. Contudo, de nada resultaram os avisos de prudência. À primeira oportunidade, saíram do palácio e foram pregar junto das populações muçulmanas.

Temendo pela segurança dos missionários, D. Pedro conduziu-os a Ceuta onde os julgou em mais segurança para regressarem a terras cristãs. Mas de imediato os religiosos ignoraram a preocupação e os cuidados do infante, e regressaram, tendo sido novamente presos.

Adensando a incerteza sobre o que se terá passado nesta mirabolante história, contam as tradições que, após vinte dias de prisão, o povo islâmico se terá amotinado, exigindo a libertação dos missionários. Atribuíam aos maus tratos de que os cativos eram vítimas no seu cárcere a causa de uma epidemia que alastrava por toda a cidade.

Foram reconduzidos à proteção de D. Pedro, passando a acompanhar o infante português. Numa expedição em que D. Pedro acompanhou o Miramolim, Frei Berardo terá realizado um famoso milagre da água: perante um exército sedento, o frade bateu três vezes com o báculo numa pedra donde brotou uma fonte que saciou a sede às hostes militares, reproduzindo o gesto milagroso de Moisés no deserto.

Contudo, e apesar deste milagre que muito bem deve ter caído nas hostes muçulmanas, quando regressaram à cidade, os frades ousaram converter o Miramolim, em pleno dia de festa religiosa. E o soberano acabou por ordenar a sua prisão e tortura.

Mas o desejo de martírio era muito mais forte que o sentido da preservação da vida. Apesar de a populaça interceder novamente pelos frades e de, mais uma vez, eles serem enviados para Ceuta, eles regressaram de novo, fazendo recair sobre si a ira.

No dia 16 de Janeiro de 1220, foram chamados à presença do Miramolim. Num quadro de significativa generosidade, os frades não renunciaram à sua fé, e preferiram injuriar o Profeta Maomé, atingindo o desejado martírio que, aliás, já tinham previsto em Coimbra.

Terá sido o próprio Miramolim a degolar os frades com a sua própria espada. Despedaçados, os seus corpos foram espalhá-los pelos campos, já que o fogo não os consumira. Recolhidos depois, por alguns mouros, os corpos despedaçados foram entregues a D. Pedro, que os doou a João Roberto, cónego do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Ainda nesse ano, a 10 de Dezembro de 1220, as relíquias foram recebidas em Coimbra por D. Afonso II.

O culto a estes Santos Mártires foi imediato e desenvolveu-se bastante até aos séculos XV-XVI. Em Santa Cruz surgiu a Confraria dos Invictos Santos Mártires de Marrocos, e um pouco por toda a região coimbrã nasceram tradições das mais inesperadas em torno deste grupo de franciscanos.

No dia 16 de Janeiro, realizava-se a Procissão dos Nus, com início no rocio de Santa Clara, junto ao Convento de S. Francisco da Ponte, que terminava na igreja do mosteiro de Santa Cruz. Esta Procissão dos Nus, diz a tradição, terá tido origem numa promessa de um habitante da localidade de Fala, dos arrabaldes de Coimbra. No ano de 1423, aquando de uma epidemia de peste, este terá prometido aos Mártires, no caso de cura dos filhos, todos os anos ir em procissão com os filhos, nus da cintura para cima e dos joelhos para baixo, rezar no mosteiro de Santa Cruz. Após ter sido a maior procissão da cidade no século XVIII, ela foi suspensa em 1798 por constantes desacatos.

António, um laboratório de identidade


Frei Marcos de Lisboa, na Primeira Parte das Chronicas da Ordem dos Frades Menores do Seraphico P. S. Francisco (1557), indica a data de 15 de agosto de 1195 para o seu nascimento. Contudo, não há certezas sobre essa data. É também Frei Marcos de Lisboa, já no século XVI, vários séculos após a vida do santo, a «fixar» a paternidade, apontando os nomes de Martinho de Bulhões e Teresa Taveira. O seu nome da batismo passa a ser, comummente, Fernando de Bulhões.

Os seus estudos terão tido início na Igreja de Santa Maria Maior, dos cónegos regrantes da Ordem de Santo Agostinho, tendo ingressado na Ordem, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, por volta dos 20 anos de idade. Terá estado pouco tempo no mosteiro em Lisboa, tendo-se mudado para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.

Terá sido aí, em Coimbra, enquadrado pela impressionante biblioteca monacal que os Padres Crúzios tinham organizado, que ele terá obtido as bases do seu pensamento teológico e o conhecimento dos grandes autores que marcavam o pensamento cristão.

A sua ordenação sacerdotal terá sido, provavelmente, entre 1219 e 1220, por volta dos 25 anos de idade.

Terá sido por esta altura que se deu um episódio marcante na vida e no sentido de missão de Fernando de Bulhões. Aqueles que viriam mais tarde a ser conhecidos como os Mártires de Marrocos passaram pelo Mosteiro de Santa Cruz, pregando e instruindo, antes da sua derradeira viagem. Ora, tocado pela pregação destes homens, Fernando adere à sua interpretação da missão, ao vir a tomar conhecimento do epílogo fatídico dessa viagem.

Fernando abandona Santa Cruz de Coimbra e junta-se a outros franciscanos, no eremitério de Santo Antão nos Olivais. Muda então o seu nome para António, numa profunda invocação a Santo António do Deserto (Antão do Egito, «fundador» do monaquismo cristão, nos séculos IV-V).

Procurando o seu sentido de missão, embarca para Marrocos no início de outubro de 1220. Não voltará mais a Portugal. E conta a tradição que teve de abandonar o seu objetivo de missão devido a uma doença. No regresso, uma tempestade leva-o para a Sicília, onde se recolhe num convento franciscano em Messina. Estaríamos, então, na Páscoa de 1221.

Terá sido ainda nesta primavera de 1221 que António se embrenhou mais ainda na vida franciscana. Em maio, integrou o grupo de frades que se deslocaram a Assis onde se realizava o Capítulo Geral da Ordem, com a presença do próprio Francisco.

No final do Capítulo, António terá criado uma maior proximidade com o novo Provincial da Romanha, Frei Graciano. Foi, então, enviado para o eremitério de Montepaolo, onde passará 15 meses em meditação e disciplina profundas.

Para além das pias atitudes e do sentido profundo de missão, António faz-se notar como grande orador e excelente teólogo quando, nesse período, participa numa cerimónia de ordenação de Irmãos, tomando da palavra, aparentemente de improviso, perante uma grande assembleia de Franciscanos e de Dominicanos.

Marcado um estilo, no Capítulo Provincial seguinte, António foi o escolhido como pregador na província da Romanha, e viu o seu estatuto reforçado, na Ordem, quando, em novembro de 1223, o papa Honório III sancionou a versão final da Regra da Ordem Franciscana, em que a oratória e a erudição foram contempladas como parte integrante da formação e da ação dos frades, se bem que sob a condição de estarem subordinadas ao trabalho manual, à prece e à vida espiritual. Neste sentido, é o próprio Francisco de Assis que o convida para ingressar na Casa de Estudantes que a Ordem abrira em Bolonha.

O seu lugar de relevo no seio da Ordem torna-se cada vez mais significativo, quer dentro dos objetivos da fraternidade fundada por Francisco, quer na política papal da época. Logo em setembro de 1224, António foi enviado para Montpellier e Toulouse, para pregar em meios onde cresciam preocupantemente movimentos heréticos.

Em termos de cargos e funções, o seu caminho também foi rápido na hierarquia: quando, em 1226, participou do Capítulo Provincial em Arles, foi eleito custódio da província de Limoges, e quando, após a morte de Francisco, houve necessidade de apresentar a Regra da Ordem ao Papa, António foi o escolhido para ser recebido por Gregório IX. Em 1227, João Parente, eleito sucessor de Francisco, nomeou-o provincial da Romanha.

Foi apenas em 1230 que António se estabeleceu em Pádua. Terá sido nessa data que pediu ao Papa a dispensa do cargo de provincial para se dedicar exclusivamente à pregação. Contudo, a vida de António seria curta. Com cerca de quarenta anos, em 1231, adoeceu gravemente. Retirado para um eremitério nos arredores da cidade, pediu para regressar, assim que sentiu estar próximo o seu último momento. Não chegou a entrar vivo na cidade, falecendo no convento das clarissas de Arcella, junto a Pádua, a 13 de junho.

O seu corpo foi levado e sepultado na Igreja de Nossa Senhora de Pádua. Em 1263, os seus restos mortais foram depositados na Basília que tomou o seu nome: Santo António de Pádua. No processo de trasladação, a sua língua foi encontrada incorrupta, facto considerado milagroso e demonstrador da sua santa oratória. S. Boaventura, presente nesse momento, afirmou ser esse o milagre da prova de que a sua pregação era inspirada por Deus. Por isso, desde então, a Palavra foi considerada como significado maior da missão de António, e à luz dessa longa tradição, foi proclamado Doutor da Igreja, em 1946, pelo papa Pio XII.

Desde cedo começaram a ser passadas a escrito algumas das suas prédicas ou sermões, que rapidamente se tornam guias para irmãos e restantes sacerdotes.

Mais que escritos, nasceram muitas lendas, sendo o famoso milagre do «sermão aos peixes» dos que mais contribuiu para a difusão da imagem de santidade de António.  O padre António Vieira deu uma dimensão ainda maior a esta lenda, em torno da sua pregação em Rimini, quando os hereges a quem se dirigia o não quiseram ouvir, levando o franciscano a decidir-se por pregar às aquáticas criaturas, talvez mais capazes de o escutar.

Pregado em S. Luís do Maranhão, decorria o ano de 1654, Vieira afirma:

Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.

Da mesma forma, o elemento que será, para sempre, a marca distintiva da sua iconografia – o Menino sentado em cima de um livro aberto nas suas mãos –, reflete muito bem uma sinonímia criada pelo acaso: o Menino que do frade se aproximou e por ele fora trazido para o improvisado colo, como que embevecido pelas palavras que da sua boca ecoavam, é a dupla imagem, quer do episódio de Jesus em que pede que deixem vir a si as criancinhas, as mais puras e as únicas, talvez, a conseguir aceder às suas palavras, mas é também como que imagem do próprio Menino Jesus como muito popularmente se crê, como que validando essas mesmas palavras tidas por inspiradas – na mais pura forma, como criança, é o Verbo de Deus a sair do texto das suas palavras.

Em Lisboa, as festas em sua honra marcam atualmente o calendário de forma inquestionável. Já o marcariam quando, na instauração da República, estas festas eram um lugar de apaziguamento entre as autoridades republicanas muitas vezes anticatólicas e a população que adere de maneira quase automática às festas do seu Santo.

As atuais festividades, com centro nas Marchas e nos Casamentos de Santo António, são criações da década de 30 do século XX, numa tentativa de «domesticar» a dimensão de folia que se viveria no bairro antigo de Alfama. É ainda neste bairro, longe da avenida, onde as ditas Marchas desfilam de forma ordenada, numa formatura quase militar, que se juntam anualmente, na noite de 13 de junho, centenas de milhares de pessoas, para festejar o popular e folgazão Santo António que, nessa ocasião, não é comemorado como orador e lutador contra hereges, e muito menos como eremita, mas sim como o jovem que, nas muitas fontes dessa colina, abordava as jovens donzelas.

Mantém-se ainda profundamente enraizado, na memória alfacinha, um largo número de tradições em torno do Santo, que apenas o conhece por Santo António de Lisboa, de forma inquestionável e quase bairrista, do qual emerge um poder quase mágico para fazer aparecer artefactos perdidos. O Responso ao Santo, oração que tem de ser recitada sem engano algum, ainda hoje é das pagelas mais vendidas na sua igreja, mesmo junto à Sé de Lisboa, em Alfama.

Hoje, este santo é uma das mais importantes marcas do cristianismo católico e solo português. São quase sem número as igrejas a ele dedicadas, assim como festas, instituições, escolas e tudo o mais que possamos imaginar com peso na sociedade.

Sem dúvida, Santo António pode não ser de Lisboa, reclamado por Pádua, mas é-o dos portugueses, da sua identidade.


sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A construção na adversidade, ou a homenagem a José Eduardo Franco

Para uma geração, hoje é um dia feliz. Ironicamente feliz. Mas sim, muito feliz!
            
José Eduardo Franco recebe hoje a Medalha de Mérito Cultural, atribuída pelo Estado Português. Será o mais jovem cidadão a receber este galardão.
          
Para uma geração, a que hoje é tantas vezes designada como a mais habilitada de todas, a mais instruída, a mais capacitada, o Eduardo Franco é sinónimo de trabalho, de esforço, de capacidade, de empreendedorismo em quadros muitas vezes adversos, mas sempre com uma força e um sentido de missão que o levou a superar todos os obstáculos, mesmo aqueles lançados por quem teria todo o dever de o acolher, acarinhar e dar apoio.
       
Eduardo Franco fez todo um percurso, comum na minha geração, de bolsas e de projectos. Comeu o pão que o diabo amassou com milhares e milhares de horas voluntárias em projectos de outrem. Deu o seu melhor em projectos que idealizou e dirigiu, e onde foi sempre o maior e inqualificável motor. Foi o responsável por muitos elementos altamente honrosos em relatórios de actividades de muitas instituições que, sem ele, pouco ou nada teriam para apresentar.
                  
E, contudo, após um punhado de grandes encontros científicos internacionais marcantes, após vários projectos de investigação onde conseguiu reunir dezenas de investigadores e fundos imensos, após, dezenas e dezenas de livros publicados, o Eduardo Franco foi "apenas" mais um de nós na precaridade que nunca tiveram a coragem de lhe retirar, como se essa dimensão de inovação e de capacidade de trabalho fosse uma mácula, uma culpa, mesmo, que transportava por ser dinâmico e empreendedor, por não se resignar.
          
O Eduardo Franco tem como maior prova da sua capacidade e generosidade o desprezo a que é votado pelos ilustres da parte mais bafienta da nossa academia que continuam a achar que o Saber deve estra fechado e retido entre paredes onde apenas é gerido pelas políticas de progressão na carreira académica ou por simples mecanismos de tutela do poder simbólico que a cultura permite. Não, não são apenas alguns velhos do restelo, nem mesmo velhos, apenas. É algo que nos remete para uma passividade que engorda os que não se movem e os que não arriscam.
              
O mais irónico é ver essa elite académica, parada, estática, tendente para a quietude, a ter de aplaudir um homem que é a negação do estar parado. O Eduardo Franco concebe a cultura como uma realidade transversal a toda a sociedade e, em sentido de retorno, a ela regressando para a alimentar. A Cultura, afinal, só faz sentido se for direcionada para todos os grupos sociais. Só assim uma identidade se pode construir no futuro através da análise do passado. Tudo o resto não acaba por ser muito mais que um exercício de ego entre iluminados que numa mecânica autofágica se congratulam uns aos outros, esquecendo que há mundo para lá das paredes da sua sala de aula.
                
Felizmente, temos generosidades como a do Eduardo Franco. Uma generosidade de uma cultura aberta, que olha para a produção cultural como uma realidade de todos e para todos, sorridente e não cabisbaixa, empenhada no futuro e não resguardada nas paredes poeirentas da academia onde o estatuto corresponde a autoridade, negando a mais elementar natureza do trabalho científico: o debate aberto para a superação de ideias.
            
Felizmente, temos o Eduardo Franco para nos mostrar algo que, no campo das Humanidades, até nos poderia passar ao lado: afinal, e recompondo a frase batida mas muito actual, a universidade até pode iluminar o Povo antes de arder!
           
É da mais elementar justiça este acto de atribuição desta medalha. Afinal, a existir, Ele escreve direito por linhas tortas!
               
O maior abraço!
Continua a trabalhar.
Continua como és.