Dia 2
Saqqara: Morte e Vida
Três hora foi o que acabei por dormir nesta primeira noite.
Despertado, corri à janela para ver se o que tinha vislumbrado na noite
anterior era mesmo verdadeiro. E sim, era: o meu quarto tinha janela para a piscina
e para as pirâmides do Planalto de Guiza. Não foi aqui que tive, pela primeira
vez, a sensação de estar a profanar. Nesta viagem foram várias as vezes em que
essa sensação me tolheu o espírito.
A manhã começou por um dos pontos tradicionais nestes circuitos.
A minha viagem tem muitos pontos nada frequentados pelos turistas, mas o
primeiro é um dos clássicos. Fomos à antiga Mênfis, a um espaço aquase todo a
céu aberto onde se acumulam estátuas, estelas, sarcófagos, de tudo um pouco.
Mas, realmente, não fomos à famosa cidade das “muralhas
brancas”. Teremos passado vários metros acima das suas ruínas, no actual
casario egípcio que foi moldando a paisagem numa continuidade de milénios. O
sol era já abrasador e nem nove horas eram, quando o autocarro nos colocou à
entrada do recinto museológico.
O ponto fundamental desta visita era a colossal estátua de
Ramsés II, com mais de 13 metros de comprimentos e uma enormidade de toneladas
que inviabilizou o seu transporte para um museu. Todas as peças deste complexo
estão ao ar livre, excepto este imenso monarca que foi enclausurado dentro de
um edifício de primeiro andar, de cujas varandas podemos admirar a obra
excepcional, seja em volume, seja em qualidade escultórica.
Este foi o primeiro contacto com o “tempo” egípcio. O que
implicou, em termos de investimento de tempo, fazer o que eu tinha ali à minha
frente? Quantos mestres? Quantos aprendizes? Que “máquina” tinha sido montada
para eu um trabalho a tantas mãos tivesse a perfeição que eu vislumbrava…E isto
em plena Idade do Bronze, meados do segundo milénio antes de Jesus ter nascido,
muito tempo antes de perfeitos e exactos instrumentos de medida, de calculo e
de desbaste da dura pedra.
E o tempo, no Egipto é, para mim, o centro de tudo, o que
explica e nos embasbaca, o que nos deixa sem palavras. E uma necrópole, a “cidade
dos mortos”, como a palavra indica, é nas margens do Nilo o expoente da noção
de tempo: a eternidade.
Uma pirâmide é, à letra, a “casa de eternidade”, feita em
pedra por isso mesmo, com todas as características para ser uma morada eterna
para o seu ocupante, um rei, o deus Hórus. Saqqara tem as primeiras pirâmides,
especialmente a famosa pirâmide escalonada de Djoser, o mítico monarca que
tinha como seu vizir o ainda mais mítico Imhotep, arquitecto e médico,
posteriormente divinizado.
A passagem de uma simples estrutura paralelepipédica que
enquadrava e cobria uma estrutura escavada no solo para uma imensa colina
artificial é a marca de uma mudança religiosa tremenda. Sem deixar a herança
ctónica, a pirâmide afirma o mundo dos astros, seja o Sol e as suas
coordenadas, sejam as estrelas, especialmente Sótis.
Como bónus, não previsto na visita, depois da visita a uma
mastaba de um alto funcionário, desci ao interior da pirâmide de Teti. Se a
estrutura externa já pouco faz lembrar uma pirâmide, de tão deteriorada está a
pedra, típico nas estruturas funerárias desta época já mais tardia do Império
Antigo, o interior, feito de grandes monólitos, está em perfeitas condições.
A descida, acentuada, deixava as minhas costas viradas a Norte,
embrenhando-me para o centro da terra no sentido do Sul. Desci sempre agachado,
com o corpo dobrado, sem me puder erguer. Terminada a descida, um longo corredor
mantinha a direcção, e continuava a obrigar-me a uma posição de submissão, de
respeito, de reverencia. E foi assim que cheguei à câmara onde, a Ocidente, debaixo
de um céu estrelado, ainda repousa o imenso sarcófago descoberto em 1882 por Maspero.
A câmara funerária deste monarca é a segunda que apresenta
os chamados Textos das Pirâmides, um conjunto de textos de instrução e
encantatórios para ajudar o defunto monarca na sua jornada até se transformar
num Osíris. Imagem de uma certa democratização dos direitos após a morte, pelo
menos ao largo grupo de altos funcionários, o monarca perde estatuto e já não
tem a mortalidade como automática, precisa de ajuda.
Só aqui, depois de me erguer, percebi que, de facto, estava
no interior de uma pirâmide, alguns metros abaixo do nível do solo, e com uns milhares
de toneladas de pedra por cima. Mas o espaço era leve, simples e harmonioso.
Talvez a sensação de bem-estar se devesse ao simples facto de o lugar ser
fresco, por oposição aos tórridos 40º que deixara uns minutos antes. Mas não,
não era isso ou, pelo menos, não era só isso.
Já em Ugarit experimentara a saída de um túmulo, mesmo ao
lado do Templo de Baal, o deus que tem como centro da sua vida mitológica a
morte a ressurreição. Não sei se na voragem da guerra na Síria a actual Ras
Shamra foi poupada e as ruínas de Ugarit preservadas. Não sei se lá regressarei
alguma vez. Mas acho que fui a Ugarit novo de mais. Só agora, com outra
compreensão e vivência da intensidade e emotividade dos ritos, compreendo a
profunda relação entre os textos mitológicos a forma como se viviam as ideias
de Morte e de Vida.
Hoje, na pirâmide de Tetis, a simbologia da Morte já me diz
muito mais como acto quase profilático da Vida. Não se fica imune ao percorrer
os gestos da saída de um túmulo. Ou, melhor, parafraseando Saramago, se se sair
imune, “não merece que se lhe explique segunda”, tanto mais que o vivenciar não
é do campo do conhecer, não se explica: vive-se, sente-se. Ou não – e aí, nada
há a fazer, a não ser “turismo”, passando pela vida sem Viver.