No dia em que soube que o Jornal de Letras irá deixar-nos, tomo a liberdade de reproduzir o artigo que em 2016 (na edição de 21 de dezembro) publiquei a respeito da então recente tradução da Bíblia por Frederico Lourenço.
Frederico Lourenço
A Bíblia, o elogio da poética e o regresso à cultura
Tal como no chamado
Cântico dos Cânticos, ou nas imensas poesias tradicionalmente atribuídas a
Salomão e insertas na Bíblia, alguns cantos da Odisseia continuam a despertar
em nós o fascínio que despertam os enigmas que nada de estranho nos apresentam,
mas que indizivelmente fogem à compreensão que as palavras, quase sempre
imediatas, procuram abarcar.
Nesse distante poema
homérico, de mais de 2.500 anos de sentidos e leituras, um aedo é chamado a
declamar, tal como sucederia nas comuns noites num palácio em que se reuniriam
em torno do lume os grandes, os nobres, os guerreiros e os aventureiros, aqueles
que tinham novas para transmitir. O aedo, qual metáfora do poder do seu olhar,
é cego. Mas fala, declama. É escutado.
E as “novas” poderiam ser
plenamente novas ou não. Os mitos nasciam desse afastamento a um tempo concreto
mediante a assunção de uma dimensão primordial, organizadora de uma ordem, de
um sistema. Ouvir um aedo a declamar a sua poesia era, quer escutar novidades,
num tempo onde o Saber era lento na transmissão, quer voltar a entrar dentro de
conhecimentos ancestrais, já sabidos, em nada novos, mas constantemente
rememorados e revalidados. Sendo apreendida individualmente, a poesia era uma
dimensão social e colectiva.
A poesia era
verdadeiramente uma linguagem de códigos, de descoberta. Se a prosa descrevia o
linear, os tratados, as contas, os registos, a poesia, com o seu ritmo, com a
rima e a entoação, quase sempre acompanhada de música, era o campo do que não
podia ser apenas ouvido, mas tinha de ser entendido. A poesia era hermenêutica
em potência, era abertura à interpretação, era convite a elaborar e a
descobrir.
Não será, obviamente por
acaso que muitos Textos Sagrados se encontram nessa forma ritmada que faz
entrar o leitor e o ouvinte numa dimensão fora da linguagem normal, num quadro
de ritmicidade, numa valoração de ritual, de contacto com uma Verdade fora da
compreensão imediata.
É este, em meu entender,
o ponto de contacto mais interessante entre traduzir Homero e traduzir a
Bíblia. Pouco aqui interessa a qualidade das traduções de Frederico Lourenço,
mais que aclamadas, validadas e reconhecidas por gente de cultura e académicos;
o que de mais importante o recém premiado com o Prémio Pessoa nos trouxe foi,
literalmente, a Bíblia de volta.
Muitos foram, ao longo
dos séculos, os medos, os receios e os interditos ligados à tradução da Bíblia.
Se o mundo influenciado pela Reforma Protestante democratizou a Bíblia,
deixando-a influenciar a sua cultura, desenvolvendo rapidamente a alfabetização,
por exemplo, nos meios católicos a Bíblia manteve-se até quase hoje um absoluto
desconhecido.
Frederico Lourenço, numa
tradução não ligada a confissão cristã alguma, municiado essencialmente da sua
capacidade de domínio do grego, começou a fazer com o texto bíblico aquilo que
fez tão elegantemente com a Ilíada ou a Odisseia.
E fazer o mesmo com estes
textos que num olhar religioso são tão diferentes, é assumir que um aspecto
fundamental eles apresentam em comum: seja-se religioso, ou não, a Bíblia é um
texto fundante do que somos. Ao retirar o monopólio da tradução e da edição da
Bíblia ao mundo religioso, Frederico Lourenço fez regressar a Bíblia à cultura,
de onde, afinal, nunca deveria ter saído.
Com o trabalho de
Frederico Lourenço, passamos a ter mais que uma nova edição da Bíblia, passamos
a ter uma edição descomprometida com uma visão religiosa. Não que para a
História da Bíblia toda e qualquer ligação religiosa não seja importante, mas
hoje, mais que nunca, urge perceber que ela é um património que não se esgota
no campo da crença e das afirmações de fé.
E, num passo mais a
seguir, ao ter uma tradução que pega no texto como produtor de cultura, somos
todos nós, leitores, chamados a ler, agora fora dos púlpitos onde se apoia a
dogmática e a palavra certa. Regressando com a Bíblia aos textos de Homero,
aliás, textos em muito contemporâneos dos bíblicos, e geograficamente não muito
distantes no que respeita aos locais de redacção, esta nova tradução realizada
pelo classicista da Universidade de Coimbra impele-nos à leitura poética do
texto, como que declamada, como eram, de facto, para serem lidos quando foram
escritos.
É que a poética abre-nos
a porta para o único e o irrepetível; cada leitura é uma vivenciação. A grande
tentação de reduzir a capacidade de pensamento e de leitura a uma lógica religiosa
encontrava-se na uniformização, na normativização, na nivelação. Por esta razão,
a Bíblia foi tão pouco tida em conta em grande parte da História do
Cristianismo: ler a Bíblia, como qualquer outro texto antigo, fornece
ferramentas para as mais profundas problemáticas, ou não fosse isso mesmo que
fez com que estes textos perdurassem e se tornassem “clássicos”.
É desta forma livre e
liberta que o texto bíblico pode ser redescoberto como centro de cultura. É na
sua capacidade de inebriamento, fora das regras religiosas, que a sua Sabedoria
surge e se espraia no leitor ou, regressando ao aedo de Homero, no ouvinte,
anulando a diferença entre o que escreveu, seja poeta, ou não, e o ouvinte,
aquele que ouve, trauteia ou repete.
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