quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mandela | Vida

Numa vida inteira que viva, não deverei conhecer ninguém como Mandela. É hoje uma marca de egoísmo que tenho e que quero afirmar na minha pequenez. Não conheci Mandela. Dificilmente no meu tempo, entre os vivos, aparecerá outro ser humano da sua grandeza.
                                                    
Apenas posso falar disso que é um não conhecer. Mas tantos são os “que não conhecemos” que nos entram por casa dentro nos noticiários! Com Mandela era diferente. Ele não nos entrava pela casa dentro. Ele sorria à porta e pedia licença.
                                             
Que história de vida, e que capacidade para nunca abandonar aquele sorriso que lhe marcava sempre o rosto. Ao mesmo tempo frágil e tenaz, Mandela era uma imagem que cativava pelo que ela representava de impossível. Ele era Utopia transformada em pessoa, em ser, e em colectivo.
                                                 
A História, todos a sabemos. Da luta, da prisão, da liberdade, da unidade, dos desafios e da construção de uma Nação. E exactamente porque todos a sabemos é que ela é de uma magnitude que foge ao comum dos estadistas. É que Mandela não era um estadista. Ele era muito mais, era um líder que interpretava, de facto, um povo e um pais.
                                                    
E era um líder, não dos que lideram porque vencem eleições, mas dos que lideram porque a sua acção faz com que todos nele vissem uma capacidade e um exemplo acima de todas as definições da acção política.
                           
A África do Sul não está de luto. Bendita a Pátria que tal Filho teve! Poderíamos dizer seguindo o poeta.
                                              
De luto estamos nós que não conhecemos Mandela. Não do luto de uma morte, mas do luto de uma vida sem ninguém da sua escala que nos lidere.


sábado, 23 de novembro de 2013

Anti (semitismo - judaísmo - israelismo – sionismo): algumas diferenças

Cada vez mais urge olhar para as palavras que usamos com um cuidado redobrado, fugindo à leveza da fugacidade das realidades passageiras.
De facto, no actual mundo do fast food intelectual e cultural, assistimos constantemente ao abusivo uso de determinados conceitos, de vocábulos que nasceram com definição clara do seu sentido mas que, pelo seu uso muitas vezes irresponsável, o perderam por completo, lançando um caos pantanoso onde tudo pode ser dito.
Não se trata de um purismo linguístico, mas sim de um esforço que é necessário fazer para afastar muitos mal entendidos e muitos juízos de valor.
E é importante tratar as realidades com os nomes que, de facto, se lhes aplicam, porque os nomes, as palavras, querem dizer alguma coisa, criam nuances de sentido, subtilezas de pensamento. A generalização de certas expressões que deixam de ter um sentido claro é uma das mais profundas provas de iliteracia.
O caso dos quatro vocábulos usados em título é significativamente importante porque nos obriga a um exercício de pensamento em que se separam fenómenos diferentes. Sem se compreenderem, nas suas especificidades, esses fenómenos, podemos estar a lançar os conflitos para campos ainda mais dramáticos, criando assim uma nova conflituosidade.
Esta conflituosidade criada nas opiniões mediante o uso de certas expressões, pode levar a reacções extremadas por parte de grupos islâmicos e judaicos, dificultando o diálogo e lançando ainda mais discórdia: o uso errado de certas palavras leva-nos para um horizonte de criação de uma guerra virtual em torno de judeus, islâmicos e “ocidentais”.
Historicamente, o «anti-judaismo» nasceu primeiro. Baseado na ideia de que os judeus mataram Jesus, o Cristo, o Deus Vivo, criou uma mácula que se estendeu por dois milénios. Culpados do deicídio, os judeus foram perseguidos por praticarem uma religião que conduziu a esse crime máximo, constantemente considerados um dos males do mundo.
«anti-semitismo» difere da noção anterior porque perdeu a carga religiosa e se abriu ao horizonte cultural mais largo do mundo semita. Um anti-semita não persegue um judeu porque ele pertence a uma religião, a um grupo humano, que optou por matar Jesus.
O anti-semitismo existe porque vê nos judeus os descendentes de uma raça inferior, os semitas. Ora, duas considerações há a fazer: 1) este fenómeno está plenamente enquadrado numa Europa que não integrou as comunidades judias, e que via nelas algo de exterior a si mesmas (os semitas não eram europeus, eram asiáticos); 2) esta palavra teve maior expressão aplicada a judeus, mas designava genericamente todas as populações com origem no Médio Oriente, incluindo árabes e islâmicos.
Desta forma, o que se passa em Israel, na Palestina e no Líbano nunca pode ser designado como anti-semitismo: ambos, palestinianos e israelitas, são semitas.
Donde, é a noção de «anti-israelismo» que deve ser lançada em campo em detrimento da anterior. E este campo já pouco tem a ver com a religião, já pouco tem a ver com a visão de raças inferiores, em tudo tem a ver com uma delimitação de um estado, em tudo tem a ver com a definição das fronteiras e com as resoluções da ONU que obrigavam Israel a confinar-se a uma determinada linha fronteiriça.
Ser anti-israelita não implica uma posição antisemita. Um dos «anti» é de natureza “rácica”, o outro, é de natureza política.
Mas, obviamente, nada é linear. Transversalmente, há ainda a ideia de «anti-sionismo», conceito de mais difícil definição. O moderno sionismo nasce no século XIX e tem como objectivo o restabelecimento de uma pátria judaica no espaço do antigo Israel. Muito do anti-semitismo do século XIX nasce por oposição às linhas de poder de grandes famílias judias que fomentaram esses discurso de regresso à Palestina.
Para muitos, esse regresso implicava um domínio completo e total da região, e não apenas de um território mais pequeno. Pretendia-se, miticamente, alcançar os vastos domínios de David e de Salomão, recriando uma certa ideia de império, de domínio muito acima do nacional.
Complexificando ainda mais um pouco, o facto de o Estado de Israel ser um Estado Judaico, e de os judeus pelo mundo fora se sentirem solidários com essa nação (muitas vezes com dupla nacionalidade simplesmente por serem judeus), provoca o esbatimento dos conceitos anteriores. Por analogia, as reacções às comunidades judias fora de Israel são como que um ataque a Israel na medida em que há uma relação próxima entre essas duas realidades.
Muito se ganhava se as palavras fossem usadas correctamente. Muito do que de conflito latente se tem criado na Europa poderia ter sido talvez evitado, ou amenizado, se quem escreve ou fala sobre estas questões não falasse, por exemplo, constantemente em anti-semitismo, relançando um fantasma que, agora, quase não existe. Se continuarmos a falar tanto dele e da forma como o temos feito, talvez o ressuscitemos ...
Texto publicado no jornal diário Público, a 13 de Agosto de 2006.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

União Europeia / Turquia: o regresso da noção de cristandade?

Queiramos ou não, gostemos ou não, todas as nações apresentam na sua estrutura identitária dados vindos do mundo religioso. Portugal é um país de base cultural católica. Sejamos, de facto, católicos, ou então evangélicos, protestantes, budistas, judeus, ateus ou laicos, etc, não nos podemos esquecer que a nossa cultura nasceu e se desenvolver num contexto que privilegiou secularmente um credo; só em 1974 o catolicismo deixou de ter lugar consignado na Constituição; só em 2001 foi votada uma Lei de Liberdade Religiosa – é significativo.
Somos inconscientemente herdeiros de um passado irrevogável, e através dele nos apresentamos profundamente marcados na nossa forma de estar e de viver o mundo e os seus problemas.
Não está certo nem está errado: é um facto histórico com o qual temos de conviver e que devemos ter presente sempre que pensamos em cultura em Portugal. Dependente de Roma e do catolicismo, ou afirmando-se a ela irreverente e tomando formas de recusa, toda a nossa cultura não passa ao lado desse realidade: a base católica do país.
Toda a Europa comunga da mesma noção identitária, mais ou menos enraizada nas suas gentes e nos seus hábitos.
Durante longos séculos, no Ocidente medieval, mais que reinos, principados e condados, havia a grande mole que identificava o todo colectivo, a «cristandade». De facto, a génese da cultura ocidental está profundamente ligada à noção de organização do mundo que tem em dados imaginários e simbólicos os principais referentes da construção geográfica.
Mais que identidades políticas autónomas, a cultura medieval, onde Portugal logicamente se inclui, tinha como fundamentais referentes do espaço categorias simbólicas e espirituais. O horizonte geográfico era um horizonte espiritual. A Europa, os Estados-nação, construíram-se mediante uma identidade que era, essencialmente, religioso-simbólica: a ideia de cristandade que se afirmava face aos que o não eram.
A contínua polémica em volta da retoma das negociações para a entrada da Turquia na União Europeia trouxe novamente esta identidade ancestral da Europa ao de cima.
Porque é que a Turquia, segundo, entre outros, Valery Giscard d’Estaing, não pode entrar para a EU? Está fora da Europa? Será por isso?
Pode ser, levado em sentido estrito, de facto. Grande parte do território da Turquia não se encontra no continente europeu, o mesmo se passando com a sua população. É um argumento que pode parecer lógico, mas não satisfaz. A delimitação entre Ásia e Europa é significativamente artificial; basta ver que a Rússia engloba há séculos territórios de ambos os lados e em nada isso fez perigar a sua unidade; são as escassas centenas de metros de mar que dividem ao meio a antiga Constantinopla que marcam uma radical diferença entre povos?
Ora, o que se passa é que a Turquia será o primeiro pais da União Europeia a não ter como base religiosa o cristianismo numa das suas versões históricas: catolicismo, ortodoxismo ou protestantismo.
Durante séculos o Ocidente europeu fez cruzadas para afastar o muçulmano da Terra Santa; durante séculos os Papas exararam bulas a exortar à guerra contra o “infiel”, e os reis da cristandade responderam a essas bulas com sangrentas conquistas.
Durante séculos o muçulmano foi, de facto, o grande “papão” da Europa. Temos um grande preconceito que vem do século VII da nossa era em relação ao Islão.
Foi com esse preconceito, com essa visão negativa do “outro” que construímos a nossa identidade. É nos impossível ultrapassar essa herança de forma fácil. Pode a Turquia entrar para o clube das nações da Europa?
Pode a Turquia juntar-se ao grupo de países que durante séculos viram o seu espaço e a sua religião como a principal marca do demónio no mundo dos homens?
Que sabemos nós sobre a cultura turca? Sobre o Império Otomano que normalmente é totalmente esquecido nas nossas disciplinas de História?
Nada. Somos, nós Europeus, totalmente desconhecedores dessa realidade culturalmente riquíssima que é a Turquia, herdeira do grande Império Otomano. Só o pré-conceito existe. Nada de conhecimento.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

…são rosas, senhor, são rosas…



É complexa e prenhe de incertezas a linha que transmitiu o conhecimento dos textos antigos herméticos até ao fim da Idade Média e, depois, ao nascimento, quer do rosacrucioanismo no século XVII, quer da maçonaria no século XVIII.
Não sabemos em que rosas se terão transformado os pães que a santa rainha distribuiria aos pobres. Mas sabemos que a escolha destas flores para centro desta lenda implicou, inevitavelmente, que o seu conteúdo simbólico fizesse apelo a elementos de significativa força, correspondente a múltiplas leituras, mas una em significado. Obviamente, não estávamos perante um rei malvado que mandaria decapitar a sua rainha por esta dar de comer aos pobres. Que comida, que pão seria esse que se transformou em rosas? Logo em rosas?...
Na sua multiplicidade de espécies, com os seus matizes de cores, volumes e tipos de pétalas, as imagens riquíssimas de simbologia estão sempre presentes nesta flor, tratem-se das Rosas de Sta. Teresinha, simples, singelas e pequenas, ou nas …. Rosas de José de Arimateia, remetendo-nos directamente para a personagem que teve a responsabilidade do depósito do corpo de Jesus, e que, em algumas tradições, recolheu o sangue de Cristo no Graal.
Não é pouco vulgar a assimilação desta flor com grande valor simbólico ao sangue Cristo, ao que ele representa de sofrimento, mas também de conhecimento, de superação e de capacidade regeneradora. Ou não fora, mesmo antes do nascimento de Jesus, esta a flor que, segundo algumas tradições, fora tingida pelo sangue que escorrera das feridas da amada de Adonis, Afrodite, aquando da perseguição que dera a morte a este.
Na tradição rosacruciana, a rosa é colocada exactamente no centro da cruz, tomando o lugar de destaque dessa imagem, no espaço iconográfico do próprio Cristo, como que o representando na sua essência, opondo-se à materialidade que é o lenho. A rosa representava, através dessa oposição, a espiritualidade implicada no processo de procura. O pão que se transmutava em rosas, teria o mesmo sentido, o alimento material que se transformava em alimento do espírito, de procura.
A simbologia desta flor vem de longe. É com este símbolo da beleza e do segredo que a amada cantada no chamado Cântico dos Cânticos se identifica (Cant. 2,1): Rosa de Saron. Geometrizada e “orientada”, cosmicizada qual dimensão de uma sabedoria cósmica, a rosa ainda a é dos “ventos”, indicando sempre esse Oriente marcado pela direcção de Jerusalém. E o Rosário, que Maria tanto quer que os fieis rezem, ainda tem marcado no nome essa dimensão de completude que a rosa foi buscar quando ao longo da Idade Média foi sendo plasmada à imagem da roda, ao circulo perfeito, aqui a Coroa de Rosas, na tradição católica. O Rosário, tal como existe hoje, foi entregue pela Virgem a São Domingos de Gusmão em 1206, já no século em Isabel de Aragão foi desposada por D. Dinis.
Seguindo a imagem da Rosa de Saron do Cântico dos Cânticos, na actual França, exactamente nesta mesma época, era começado a escrever o célebre Romance da rosa. A coincidência temporal e proximidade geográfica fazem caminhar o olhar para fora do horizonte das coincidências. O valor do símbolo estava assumido.
Mantendo uma tradição que se consegue perceber, pelo menos, desde o século X, no 4º domingo da quaresma, o Dia das Rosas, o papa ainda hoje benze uma Rosa de Ouro, recriando o ritual em que levava uma Rosa também de Ouro à Basílica de estacional de Santa Cruz de Jerusalém, ligando, mais uma vez, a Cruz à Rosa.
A história popular da Rainha Santa Isabel é, sem dúvida, uma das mais conhecidas em Portugal, e que em muito marcou o imaginário nacional. Essas rosas colhidas em Janeiro do regaço da rainha, foram uma parte de um folclore que perdeu o sentido por detrás dos símbolos. A época exacta do aparecimento desta lenda não está determinada com rigor. Apenas sabemos que ainda não consta de uma biografia, anónima, escrita no século XIV. É bem provável que circulasse oralmente. A versão escrita mais antiga deverá ser a transmitida através da Crónica dos Frades Menores, de Frei Marcos de Lisboa, 1562.
Através de séculos largos e com narrativas e símbolos complexos de entender, tal como a Rosa, muitos conteúdos foram sendo recriados continuamente por grupos que tinham na procura do conhecimento e na compreensão do mundo o seu polo aglutinador de sentido.
Quanto da nossa cultura herdámos destes grupos altamente letrados e com uma dedicação elevadíssima ao conhecimento? Sem preconceitos, com rigor e com respeito, é esse o trabalho que em Portugal se começa a fazer através da proposta editorial que a Fundación Rosacruz aqui nos trás.

A área de Ciência das Religiões tem a maior honra em poder participar deste trabalho de rigor que, estamos certos, é apenas o começo de uma caminhada que n os levará a mais e mais profundo conhecimento de nós mesmos.

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Texto publicado como introdução ao livro A Sabedoria do Silêncio, da Fundacíon Rosacruz, aquando da exposição homónima na Torre do Tombo, em Lisboa.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Palavras antigas em caminho pelo mundo moderno

É por demais sabida a origem e inspiração antiga de muito do que de pensamento e inovação a civilização ocidental criou no último milénio. As heranças, que quase sempre nem imaginamos, carregamo-las diariamente.
Fugindo ao mundo das religiões, que são a maior mostra de continuidade a nível de pensamento e comportamento humano, olhemos para o universo das marcas.
Quase todos os ramos do saber necessitam, para se legitimarem, de ir buscar (ou melhor, rebuscar) uma origem à Antiguidade. Para os geógrafos é, entre outros, Estrabão; para os historiadores é Heródoto; para os médicos é Hipócrates, etc, etc, etc.
Qual a semelhança entre o métier desses pais originais e o dos seus discípulos actuais? Regra geral, nenhuma. Trata-se de um símbolo de paternidade.
E é de símbolos que interessa falar quando nos referimos a algumas das influências antigas na ciência actual.
Talvez a actividade de Hipócrates tenha pouco a ver com a dos clínicos actuais, mas a verdade é que boa parte dos produtos farmacêuticos actuais foi buscar nome a raízes directas do grego clássico. Essa opção torna mais fácil a percepção, por parte dos médicos, farmacêuticos ou doentes, do campo de eficácia do produto? Não, em princípio só os cidadãos gregos perceberão que, por exemplo, o xarope Atarax (sem o qual o meu agregado familiar não pode passar), faz apelo à ataraxia, uma espécie de estado idêntico ao nirvana que os gregos atingiam com algumas drogas.
Obviamente, é escusado falar nos nomes científicos dos animais e plantas … quanto de grego e latim se espraia na classificação de Lineu.
Mas é todo o nosso dia-a-dia que vai buscar referências imperceptíveis a esse horizonte. Sem se dar por isso, andamos a soletrar verdadeiras frases em grego, latim, hebraico, e até egípcio.
Haveria nome melhor para uma marca de produtos desportivos que Vitória (em grego niké)? E uma linha de produtos de beleza que fosse A Beleza (no grego to kálon)? E os electrodomésticos que são Optimos, Excelentes (em grego aríston)? E porque não referir a marca de produtos didácticos e pedagógicos que é colher, escolher ... (Lego, em latim)?
De facto, até o perdido egípcio hieroglífico, só decifrado no segundo quartel de oitocentos, deu nome a automóveis: o Opel Ká foi buscar o dito «ká» à palavra egípcia que designava uma das vertentes não materiais do corpo humano: um verdadeiro, como a publicidade dizia, “carro com alma”. Mas o mundo automóvel está repleto de referencias à Antiguidade: do Clio (musa latina da história) ao Megane (superlativo de mega, grande em grego), muito mais se poderia referir. E por falar em «grande», também a relojoaria não ficou imune a este vocábulo usando-o para uma das suas principais marcas, a Omega.
Mais se poderia acrescentar. Quando ouvimos falar na Nissan, estamos a recordar um mês do calendário semita antigo; quando compramos as pastilhas da Adam’s, dizemos o nome do primeiro homem da criação divina.
Enfim, “o mito é o nada que é tudo”, nas palavras de Pessoa. Não tivesse sido debaixo de uma macieira que Newton teve a ideia da Lei da Gravitação Universal … no fundo, uma das árvores que na leitura medieval e moderna da tradição judaica era a Árvore do Conhecimento que estava no Éden… Nunca poderia ter sido debaixo de uma figueira!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Laicidade e Secularização. Entre processo e imposição

Hoje, 22 de Agosto, no Público:

Há duas formas radicalmente diferentes de definir a relação entre uma lei e a sociedade a que ela se aplica. As leis podem ser expressão de uma vontade, ecos do colectivo, e nesse caso a sociedade aceita essa lei como sua sem a contestar, ou a lei pode “ir à frente” da sociedade, e dirigir, impondo um caminho que por vezes é contestado ou, pelo menos, não cumprido na íntegra – supondo nós que esse “ir à frente” é legitimo porque se enquadra numa visão de progresso civilizacional, dimensão hoje cada vez mais complexa de aceitar de forma cega.
Para nós, hoje, cidadãos europeus do século XXI, e herdeiros de toda uma série imensa e violenta de revoluções e de grandes alterações mentais, a secularização da sociedade parece natural. A laicidade do funcionamento das instituições parece-nos ser como que imanente à própria forma de organização e de ordenamento da natureza, um dado indiscutível.
No Médio Oriente, nos casos turco e egípcio -os casos que mais vezes eram indicados como os que mais longe tinham ido nessa separação de poderes que, no mundo islâmico parece tão complicada de fazer pela própria natureza do Direito e pela literalidade de leitura do Texto Sagrado- , a secularização das instituições que teve lugar ao longo do século XX em nada vem de uma sustentável vontade popular.
A laicização da sociedade e da forma de entender o Estado, é em tudo um fenómeno do ocidente europeu e da América do Norte. É um processo que começa com a Reforma Protestante, que com as teorias do Direito de finais do século XVII e com o Iluminismo se consolidam e ganham foro de Lei nas Revoluções Liberais.
Quer no Egipto, quer na Turquia, milhares de anos nos olham com a serenidade do tempo que tudo envolve, mas onde quase sempre os poderes foram absolutos e teocráticos. Os fenómenos de laicização do Direito e da Política em países como o Egipto ou a Turquia, não saíram de um longo processo de maturação de ideias “autóctones”, de um caminho de uma elite através da sua identidade cultural integrada, mas de todo um conjunto de factores de manutenção de poder fora da esfera religiosa, legitimando uma nova elite, os seus lugares e as suas funções.
Na Turquia de Atatturk, a laicização deu-se pela forma de uma revolução que impôs essa mesma laicidade que, na Europa onde nasceu, implicava directamente a Liberdade. É neste jogo de contrários, de uma laicização que é em tudo ideologia política imposta e não vontade popular desenvolvida, que vemos a Democracia, a liberdade de escolha, de ambos os países definir um caminho que potencia a negação dessa mesma laicização.
O fundador da moderna Turquia, com gestos perfeitamente déspotas para as formas de acção que hoje defendemos, proibiu as roupas identificadas com o Islão em 1934, levando à adopção de roupas europeias pela elite nacional. Simbolicamente, a esposa de Ataturk deixou de usar o chamado véu islâmico. A esposa do actual presidente Turco já foi duramente criticada por sectores mais radicais por o usar…
As mudanças nunca se fazem por decreto, nem se importam. Sobretudo quando a tradição está cimentada na identidade religiosa.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

“Tudo na vida” de Pedro Paixão, ou a deslumbrante destruição da linguagem



O erro não é das pessoas […] a vida é que está errada.
[…]
Tudo na vida devia ser diferente, disse. As palavras são o maior erro. Todas as palavras. Não há nada de mais inútil porque nada nos responde.
[…]
Mais tarde ou mais cedo acabas por descobrir que não saberes não quer dizer que alguém saiba. Nem a tua ignorância te salva.
Pedro Paixão, A Noiva Judia, p. 25.

Já não sabia porque deixara o livro do Pedro Paixão quase no início. Não sei quando fora, mas há bem mais de 10 anos, pelo que a falta desse laço da memória me faz depreender. Mas percebi de imediato. Tanta dor, tanta tristeza, tanta incapacidade de lidar com o mundo e tanta negação do eu. É duro este livro. É brutalmente vivido por uma vida intensa mas dolorosamente desistida de si mesma.
Numa escrita perfeitamente laicizada, “desencantada” de qualquer parcela de divino, e como imagem de um máximo de sentido, por vezes o desalento torna-se em chave de uma certa raiva e chega ao lugar-comum da negação e da culpabilização. “Antes de adormecer peço que Deus não exista para não poder ser tomado como responsável por todas estas atrocidades” (p. 17), pede uma das personagens informes, num humanismo, ao mesmo tempo profundo, mas ironicamente leve e descomprometido como quem poderia dizer qualquer outra coisa.
Mas na maioria das vezes, o desgosto e a dor irrompem de si mesmo, sem objectivo que não seja a dor em si mesma. Sem carga de ironia alguma, apenas com um sentido estético brutal na criação de afirmações de tristeza.
Num sublime exercício estético de linguagem, o grande argumento do livro é o silêncio enquanto vazio. A linguagem não serve para nada. Apenas o silêncio é o último refúgio. Mas esse refúgio é, já em si, capacidade de autoconhecimento. É mais que constatação, é verificação e capacidade de o pensar. O silêncio que leva à destruição não apenas verificado quando aconteceu. É verificado quando acontece e faz parte de uma tomada de sentido da vida, do devir humano. “Há dias que não falava com ninguém. Só consigo, frente ao espelho, a horas irregulares. Mas isso não é falar. […]. Pouco a pouco sentia que enlouquecia, e, pior que tudo, isso não o assustava. Os homens dedicados a si próprios acabariam todos ou por enlouquecer ou por tornar-se criminosos. Nisto se resumia a sua ideia de progresso da humanidade” (p. 27).
O lugar deixado pela abandono da linguagem, o abandono à não comunicação, mais que deixar o indivíduo sozinho, só consigo mesmo, como que o deixa sem nada. Mesmo sem si. “Era o tempo da expiação. Um vazio completo a ocupar a próxima hora. Sem isso vai-se tudo o resto, até tudo o que já passou” (p. 29), afirma, como se esse vazio tivesse o poder de apagar até a s memórias e as vivências. Não só não constrói, como destrói o que já teve lugar e que, assim, se esvai.
Dizer e agir. Ou não dizer enquanto acção tornam-se a máxima de uma forma de entender o passar do tempo, a história de vida, em que a linguagem marcaria o que, de facto, interessaria: “Quando volta estou estendido em cima da cama de sapatos e tudo. Ela fica de pé e observa-se sem dizer uma só palavra. É verdade que ela já me conhece. É uma vantagem, poupam-se palavras. Sempre me incomodou o abuso que delas se faz. Quantas frases disse eu ao todo na minha vida que de facto tivessem valido a pena ser ditas?” (p. 46). Para Pedro Paixão, nas suas personagens, nada mereceria o uso limite das palavras. “As mais belas recordações serão sempre mudas” (p. 47)
Para Pedro Paixão a linguagem é a face visível da acção. Fazer é sinónimo activo de dizer, quase num sentido genesíaco. “Do que conseguiu fazer nada se consegue ler na sua cara. E quando lhe perguntam : «O que é que faz?», esquiva-se à resposta, por dificuldade em voltar a encontrar aquilo que fez” (p. 43). Tudo se esvai na incapacidade de dizer. Não diz, não existe.
Mas alguma coisa ficará para a história do meu exemplar d’A Noiva Judia. À tarde, fui fazer uma compra nada usual, uma escova de aço para tratar de uma caliça a cair de uma parede. Paguei-a, e o pequeno autocolante com o código de barras como que me chamou. Encimado pela directa e bruta informação “escova de aço”, retirei-o da dita e coloquei-o, torto qb, mesmo abaixo do subtítulo do livro, mesmo na folha de rosto. Não, não é «ficção» o que este livro é. O autor, por comodidade ou outra coisa qualquer indizível, assim o rotulou. Mas ele é «destruição», por isso a nova etiqueta lhe fica tão bem. Lê-lo é passar-se numa escova de aço.

Usei a edição de 1999, a 8ª, feita em Lisboa, pelas Edições Cotovia.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A Religião enquanto Metáfora


Vai longe o excepcional ensaio de Susan Sontag sobre “A Doença enquanto Metáfora”. Iam os distantes finais dos anos setenta quando era escrito esse brilhante texto na recuperação de uma doença grave e prolongada da autora.
Hoje, muito tempo depois de a esse texto se terem vindo juntar as indagações sempre demolidoras de Foucault, a doença já está normalizada num horizonte onde a ideia de degradação se cruza com a de pecado e onde a culpa continua a fazer ecos num tempo já racional onde supostamente teríamos abandonado a ideia de falha, de mácula, de contranatura ao estado “doentio”.
Há cerca de um mês cruzei, quase sem querer, os horizontes teóricos de Sontag com os da História das Religiões. Após a leccionação de um curso breve sobre exorcismos, e da subsequente escrita de um pequeno texto sobre o mesmo tema, percebi como fomos, durante milénios, educados a ver a doença, não só como uma falha, mas mesmo como uma demonstração de uma qualquer natureza demoníaca em nós.
Ter uma verruga no nariz, como tão tipicamente apontamos às bruxas, era a marca de que estava possuída por um demónio, tendo-se a ele entregue. Era seu agente e actor. Uma malformação ou a cegueira, simplesmente, era sinónimo de pacto demoníaco, e mesmo quando no século XIX se quis encontrar uma forma de mostrar uma criança a mentir, foi pela deformação do narizito do seu pequeno que Gepeto percebia o embuste.
Mas hoje em dia as imagens da religião trazidas para a linguagem comum remetem-nos para um mundo onde a tal da falha, da mácula, quase de doença, surge de forma muito visível. Paralelamente, são importantes os estudos, entre outros, de Abddolkarim Vakil sobre a islamofobia e a forma como algumas palavras foram sendo alteradas no sentido negativo da sua conotação rácica-étnica-religiosa.
Tal como em certos países se tornou comum pedir um táxi-com-cão, para identificar um táxi que não seja conduzido por um muçulmano, continuamos a usar a palavra seita com um sentido depreciativo, surgindo ainda muitas vezes nas conversas de gente “educada” como sinónimo de grupos ou igrejas evangélicas.
A mais intrigante palavra de horizonte religioso transportada para a linguagem coloquial, e que revela os apriorismos que temos em relação ao universo religioso, é, obviamente, a palavra fundamentalismo. Fundamentalista passou a ser equivalente de terrorista. E esta rotação de significado, de um mundo ligado ao que fundamental uma fé tem, os seus textos base, para um quadro de desgraça e de destruição, é uma leitura neo-positivista que coloca uma etiqueta de erro civilizacional em todos aqueles que, muçulmanos, ou não, não aderirem 100% a uma forma de ver o mundo: laicizada e sem a necessidade de um motor divino que explique o seu devir. O Fundamentalista passa a ser todo o inimigo da visão ocidentalizada do mundo.
O mesmo se passa com uma em tudo semelhante palavra: ortodoxo. Esta tem, ainda, a peculiar característica de ter mesmo passado para o léxico específico do tratamento das religiões, baralhando tudo. Um judeu ortodoxo não é um judeu que segue a ortodoxia, a ortopráxis, do judaísmo. Um judeu ortodoxo passou a ser o equivalente, mas do lado oposto da barricada, ao muçulmano fundamentalista.
E é de guerra, de palavras e não só, que falamos. Um judeu ortodoxo seria, na base do que realmente significava, um judeu praticante e seguidos dos preceitos. Nada mais. Isto é, um membro praticante, por exemplo, da comunidade judaica de Lisboa. Um muçulmano fundamentalista é, tal como o ortodoxo, um muçulmano que segue o seu Texto Sagrado como base da visão do mundo e da organização social. Este, não faz necessariamente atentados terroristas.
Enfim, perdemos uma grande versatilidade de palavras que ganhavam nuances quando conjugadas por outras. Quando se falava num judeu ortodoxo, no século XIX ou mesmo em grande parte do XX, era necessário identificar a nacionalidade, a tradição cultural e a linhagem teológica. Hoje, numa linguagem rápida, um judeu ortodoxo é apenas um homem de longas e estranhas suíças a despontar por debaixo de um chapéu vindo de tempos oitocentistas.
Perdemos estas nuances, mas ganhámos em rancor e em ódio. Todos estes usos passaram a ser continentes poderosíssimos de violência. O resvalar destas palavras para este quadro maniqueísta é imagem de onde anda a nossa cabeça: desgraça e sangue. Pouco menos.




domingo, 4 de agosto de 2013

Sai de mim mesmo


Poucas vezes me sucede isto. Estou no aeroporto, e acabo de ser brindado com um atraso de umas três horas. Quando passamos a vida a correr e a pensar como melhor gerir esse fluir que se transformou no nosso bem mais precioso, ficamos absolutamente assustados com umas simples horitas que não vão estar preenchidas de coisa nenhuma – pelo menos, aparentemente, no normal conceito de transformar o invisível tempo em visíveis tarefas.
Corri o dia todo as ruas de Amesterdão. Claro que fui ao Red District. Claro que fui aos canais. Claro que fui à Casa-Museu de Rembrandt. Claro que também fui à Catedral que passou de católica a calvinista ainda no século XVI. Mas, sobretudo, bebi rua, comi passeios, senti asfaltos e empedrados que dão base a uma imensidão de vida que, isso sim, é “a cidade”.
Fiz todo o centro antigo a pé. Não entrei num transporte público. É assim que eu sei conhecer uma identidade. Embrenhando-me nela. Passando pelas ruas, pelas ruelas, pelos becos. E pelas esplanadas, é claro. Cruzei-me com milhares e milhares de pessoas que “são” a tal d’ ”a cidade”. Elas são a vida, o movimento, a razão de tudo o mais.
Passei por gente a chorar, por gente a rir, por gente a beijar, por gente, simplesmente, a passar, tal como eu. A variedade de rostos foi das mais abundantes. Nem sei como os descrever. Precisaria de uma paleta de muitas e muitas tonalidades para dar a cada uma delas a sua especificidade. Em cada um desses rostos não vi o coração anunciado, mas negado, do ditado popular. Mas na junção deles, vi e senti o pulsar da urbe, como se cada um fosse uma parte essencial de um emaranhado de artérias sanguíneas que se cruza em todos os sentidos.
Hoje senti-me verdadeiramente viajante. De rua em rua, nada orientava os meus passos, senão o simples e fundamental, ir andando. E andei. Por vezes, passei onde já antes tinha estado. Outras vezes, fui a novos sítios. Por fim, dominei o espaço, conheci a sua geografia.  Foi de um sabor estrondoso, virar uma esquina e lá estar exactamente o que esperava que estivesse!
Não conheço a cidade como a palma das minhas mãos – tanto mais que essas, não as conheço mesmo… -, mas larguei o mapa. Conheci com os olhos. Descobri os museus pelas sinaléticas nas ruas e nas portas. E ao fim do dia, ao vir apanhar o comboio para o Aeroporto de Shipool, estava cheio do aroma da cidade e da sua vida. Vim satisfeito. Não farto, mas com a visão adaptada a uma nova paisagem.
Sim, depois de viver assim uma cidade, passamos a ser outros. Alguma coisa, por pouco que seja, ficou em nós após esse exercício de perder a noção do tempo e do espaço, e de nos entregarmos ao correr dos pés. Tanto se aprende, tanto se vê e se sente, que nada pode ficar exactamente igual.
Amesterdão ficou num pouco de mim. Hoje, muito. Amanhã, menos. Mas, nunca, nada.
É essencial ser-se viajante algumas vezes na vida. Não turista, viajante. É diferente.

Amesterdão

Holanda
Setembro de 2011

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O grande desafio de Francisco


Terminada que está a viagem do novo Papa ao Brasil, verifica-se que foi amplamente vencida uma das possíveis apostas jogadas com a escolha deste novo Pontífice de Roma. A capacidade de reunir multidões, qual João Paulo II, revelou-se desde o primeiro dia do seu pontificado, mas nestes dias na Terra de Vera Cruz compreendeu-se a verdadeira dimensão do fenómeno mediático Francisco.
Esta dimensão mediática já tinha sido visível desde os primeiros momentos do seu pontificado em que o “actor” Francisco cativara e criara a sua audiência exactamente na medida em que se apresentava como uma personagem dissonante, que quebrava regras, que destruía normas de protocolo, que improvisava e agia deixando de lado todo e qualquer guião.
Este lado de uma postura muito humana, de uma prática centrada numa pastoral e não numa afirmação teológica sisuda, valeram a Francisco um olhar atento que procura, constantemente, sinais de mudança nos pequenos gestos e não nos grandes textos teológicos.
A viagem ao Brasil, o tradicional maior-pais-católico-do-mundo, para um Papa oriundo exactamente desse continente, mostrava-se como um momento de entronização no horizonte dos grandes palcos do mundo. E assim foi, com milhares de horas televisivas para todos os cantos deste mundo. Com milhões de pessoas a assistir aos encontros, eucaristias e homilias, e viagens em papamóvel.
Mas o Brasil já não é o país católico que era até há uma geração atrás. Hoje a Igreja Católica tem na generalidade da América do Sul uma tarefa que parece ser do campo do impossível. Todas as estatísticas mostram o ritmo a que crescem as Igrejas Evangélicas, sendo que em muitos destes países os valores de praticantes sobem já a valores acima dos 30% (no Brasil seriam já cerca de 22% há dois anos).
Ao ver as imagens grandiosas dos eventos desta semana no Rio de Janeiro, a equação deve ser relativamente alterada. É verdade que há uma significativa maioria de católicos no Brasil. Isso percebeu-se na dimensão da participação. Mas, qual o efectivo efeito deste género de “mega-missas” na malha religiosa de uma população tão heterogénea como é a brasileira?
O grande desafio é, em meu entender, exactamente a negação do que o Brasil e a cristandade católica viveu nestes dias: a superação da efemeridade que é a experiência mediática. E, convenhamos, é aí que residirá a dimensão pastoral que tanto e tão claramente o Papa procura afirmar.
Uma (re)evangelização não se fará, nunca, em banhos de multidão. Em todas as religiões, a adesão é um fenómeno espiritual, pessoal, e de um certo recolhimento no Eu mais interior que se consegue perscrutar. Espectáculo é outra coisa.

Como passar de espectador a participante? Como transformar aquele que se emociona no calor do grande evento com a singularidade do actor, no crente que vai à missa, que participa do quotidiano da comunidade, mesmo quando não tem acontecimento nenhum de extraordinário que o motive? Estas são as perguntas que devem apoquentar o católico Jorge Bergoglio, quando, entre as aparentes quebras de regras e de protocolo, ele procura encontrar sentido para o papa Francisco.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

para recordar Damasco

elementos telegráficos

Oásis caravaneiro desde tempos remotos, a cidade de Damasco tem, devido a um curso de água que a circunda, uma capacidade agrícola significativa. É, possivelmente, a cidade mais antiga do mundo habitada
ininterruptamente.
O nome desta cidade já aparece atestado na documentação cuneiforme de Ebla e na documentação egípcia do século XII a.C., grafado como «Dimaski».
Segundo as tradições bíblicas, David ter-se-á apoderado dela aos Arameus no início do último milénio a.C. (2Sm 8). No reinado seguinte, de Salomão, a cidade terá sido perdida (1Rs 11). O reino autónomo que aí se desenvolve será, em certas alturas, árbitro entre os reinos irmãos mas beligerantes de Israel e de Judá.
Em 732 Damasco passa para mãos Assírias, e depois para a órbita do mundo Persa. Jerusalém passa a depender de Damasco. Mais tarde, depois da conquista de Alexandre em 332, a cidade será campo de lutas entre os generais sucessores do jovem conquistador. A conquista romana deu-se em 64 a.C.
Na época de Jesus, Damasco era sede de uma importante colónia hebreia. Local cosmopolita, rapidamente desenvolveu uma comunidade cristã. Será neste contexto que Saulo de Tarso é encarregue (como voluntário) de trazer para Jerusalém os faltosos que seguissem os de Jesus (Act 9, 2). Será, nesse caminho, o famoso Caminho de Damasco, que se dá uma hierofania que alterará a vida do “inquisidor”, transformando-o em discípulo, em Paulo.
Como reflexo da sua importância económica, em 117 Adriano elevou-a à categoria de «metrópoli». Manteve-se uma cidade de primeira referencia até ao século VII, quando é saqueada pelos Persas.
Damasco foi a capital do primeiro grande império islâmico, o dos Omíadas. Em 635 é conquistada, após seis meses de cerco, por Khalib Ibn al Walid. Por mais um século, terá um novo apogeu, uma nova época de glória.
Depois, as cidades que marcarão o ritmo do devir serão Bagdad, Cairo, Mossul, entre outras. Durante as cruzadas, a cidade converte-se num símbolo da resistência islâmica na região, recebendo muitos refugiados que fogem ás atrocidades dos conquistadores cristãos. São reforçadas as muralhas e as portas. A cidade é
atacada duas vezes, uma em 1129 e outra em 1140.
Com Saladino, Damasco afirma-se novamente como o grande centro islâmico da região. Com muitas escolas corânicas, madrassas, a funcionar, a cidade afirma o sunismo.
Em 1400 é atacada e saqueda novamente, agora sob investida dos Mamelucos. Posteriormente, em 1516, será tomada pelos Otomanos. Até ao século XVIII manterá um forte ascendente pelo menos regional. O século XIX verá a decadência económica, e o desaparecimento do poder da cidade no panorama internacional.

uma vida nuns dias de viagem. impressões

Foi há uns anos, nem parecem muitos, que tive a possibilidade de andar pela Síria. Naturalmente, fui a Damasco. Visitei o magnífico museu de arqueologia, onde vi, entre muitas peças, os excepcionais frescos da sinagoga de Dura Europus, uma notável edificação da época romana, e um sem número de estátuas de Baal, a divindade com a qual eu dividia os meus dias, então em fase de redacção da minha aventura de doutoramento.
Ao visitar essa cidade milenar, fi-lo com a leitura atempada de Frei Pantaleão de Aveiro. Foi com as suas palavras de espanto pelo cosmopolitismo que me embrenhei no imenso bazar. Fui aos banhos, comprei roupa de seda, linda de morrer, com um corte elegante e com uma textura nunca por mim antes vista.
Quase me perdi nesse emaranhado gigantesco de ruelas onde o cheiro a especiarias nunca nos abandona. E nunca me abandonou esse sentido de estar num lugar fora das escalas em que normalmente vivemos.
Foi dos momentos mais bonitos aquele que vivi ao desembocar desse bazar, de ao longo começar a ver a luz de um sol abrasador e, metro a seguir a metro, perceber o fim das tendas e bancas, abrindo-se um limbo, um terreno de continuidade, mas já liberto de tantas mercadorias, onde uma colunata romana abria caminho até uma das portas da Mesquita Omíada construída há quase mil e quinhentos anos.
Nesse olhar, que eu fotografei vezes sem fim, três realidades se cruzavam nessa economia de trocas que é o passar e o ver. O lucro, esse foi meu, que ainda hoje, cinco anos depois, transporto comigo essa lembrança que trouxe sem pedir autorização a ninguém.
Obviamente, entrei na Mesquita onde, diz a tradição, está sepultado João Batista. Vi o túmulo, andei por entre as gentes, assisti à oração. Mas o que mais me marcou foi a gigantesca decoração floral que num dos lados essa mesquita milenar apresenta. É um emaranhado complexo de ramos e folhagens onde se vislumbra, no meio de um verde exuberante, uma Árvore da Vida sem par.
Tanta simbologia a remeter-nos para uma origem, para um Adão a quem Deus tudo deu. Um Adão que ali estava plasmado no “caminho” de cada um, na sua forma de agarrar esses troncos e de os materializar na Vida.
E Damasco era isso mesmo, um amplo lugar de peregrinação. Acompanhei a visita aos lugares da memória de Paulo, esse complexo de teologia e estratégia que pegou no pequeno grupo de judeus seguidores de Jesus e os transformou no rótulo adquirido em Antioquia, “cristãos”.
Mas também fui aos lugares de peregrinação xiita. Em momento feliz, encontrei-me na cidade no momento da grande peregrinação à Mesquita de Sayyidah Ruqayya onde se encontra o corpo da filha de Ali.
Foi, sem dúvida, dos momentos mais excepcionais da minha vida. Estive no interior da mesquita bem mais de uma hora. Todos no grupo estavam com claros receios. Entrámos. Ninguém nos perguntou nada à entrada. Uns com mais medo que outros, lá nos fomos embrenhando num espaço onde, por vezes, era difícil encontrar os centímetros quadrados onde colocar os pés.
No pátio exterior, as mulheres escolhiam um lugar onde colocar um pano e orar. No topo, colocavam uma pequena cerâmica oval com o grafiti da mesquita de Karbala. A essa pequenina peça de argila encostavam a cabeça quando se baixavam, colocando-se, assim, também eles naquele mundo onde o sangue dos seus mártires marca toda a mentalidade.
Mais no interior da mesquita, no salão central, decorria um rito só com homens. O início foi para mim verdadeiramente assustador: a pouco e pouco, o ritmo sincopado do bater nos punhos no peito, ascendia a um volume que tudo fazia abanar.
E ali estive, não sei quanto tempo. Senti esse bater dos dois punhos entrar-me pelo corpo e fazer-me tremer exactamente a esse ritmo, com uma tal força que me era impossível ficar indiferente. Parecia que tudo tremia. Paredes, tectos, pessoas, o Mundo.
E o êxtase estava ali à minha frente. Muitos homens, no centro do espaço, rodopiavam ao mesmo ritmo das batidas em cima do coração. Não sei como sobreviviam aqueles corações, mas as pessoas, passado algum tempo começaram a desmaiar.
Caídos uns em cima dos outros, muitos arranhavam-se, arrancavam cabelos, faziam-se em sofredores, repetindo, de alguma forma, os mártires que veneravam.
Já todo o grupo se recolhia a um lugar combinado, onde o guia nos iria resgatar de qualquer problema que tivesse ocorrido. Mas nada, nada de mais se passou, a não ser ter vivido algo único.

Vejam a brochura"Memórias de Damasco" que publicámos no Clube de Filosofia Al-Mu'tamid:

http://ulusofona.academia.edu/PauloMendesPinto/Papers

domingo, 28 de julho de 2013

Quando o intolerar se torna mais que ridículo, infantil

Por mais que vivamos, seremos sempre confrontados com situações em que a realidade supera a nossa imaginação. Pode parecer uma frase batida, uma forma cativante de dar corpo ao início de um pequeno texto. É-o, claro. Mas não o é apenas.
Neste momento revejo as provas de um livro que sairá em breve. Com o José Eduardo Franco  recolhemos um grupo largo de textos portugueses que são instrumento hábil para fomentar uma educação para o diálogo ou, pelo menos, para a tolerância.
Mas este momento recorda-me uma situação que me apeteceu transmitir aqui, numa vivência na primeira pessoa.
Já lá vão uns anos. Talvez uns quatro.
Eu tinha ido há pouco tempo ao Brasil dar aulas a uma turma de Pós-Graduação em Maceió. A experiência fora excepcional e, felizmente, dessa turma já vieram defender Dissertação de Mestrado quase meia dúzia de alunos, todos com trabalhos excelentes.
Mas não é sobre estes alunos de altíssima qualidade que o meu episódio se centra. Quem dera!
Regressado do Brasil, passados uns meses, fui visitado em Lisboa, por um dos professores brasileiros desse curso que vinha acompanhado por um grupo de Pastores. Vinham fazer um périplo por Portugal. Não me recordo se iriam a algum outro país europeu.
Recebi-os na universidade e, como no dia seguinte íamos fazer uma visita de estudo à Mesquita, fiz o convite que, de imediato o meu colega brasileiro aceitou.
No dia seguinte, pela hora combinada, todos se encontraram à entrada da Mesquita Central de Lisboa. O convite era para assistir à oração que teria lugar por volta das 13h. Tal como faço sempre com os meus alunos, fomos mais cedo para se poder comer no refeitório da própria mesquita, o que é um evento em si, que recolhe inequivocamente o agrado de toda a gente.
Mas desta vez foi diferente.
Na véspera, um colega meu na Un. Lusófona, e pastor, estivera com ele. Foram visitar a igreja que ele dirigia na altura. Espantado com o fundamentalismo de alguns elementos do grupo, quando soube que eu os levaria à mesquita, lembrou-se de fazer a seguinte experiência: no momento em que eu os dirigia para o refeitório, ele ligou a um deles, perguntando.lhe se iam comer com os infiéis...
Depois de uns segundos de hesitação, seis deles decidiram, de um momento para o outro, que não tinham fome.
Tantas vezes eu recordo esta situação ridícula quando revejo textos sobre tolerância....

domingo, 12 de maio de 2013

Mikhail Petrovich Artzybashev, O judeu (Estrofes & Versos, 2010.)


Mikhail Petrovich Artzybashev, O judeu, Estrofes & Versos, 2010.

De forma inesperada, dei por mim na Ler Devagar a folhear um livro para mim completamente desconhecido. O autor, nascido na Ucrânia, vivera na Rússia e o seu período de vida decorrera entre 1878 e 1927.
O Judeu, uma pequena obra, de pouco mais de vinte pequenas páginas, trata uma situação que deveria estar muito nas mentes desse tempo: a guerra, a devastadora belicosidade entre os Estados europeus, que lançava milhões de anónimos soldados para situações de esgotamento físico, psicológico e moral, levando-os para níveis de sub-humanidade para nós hoje totalmente desconhecidos, onde as trincheiras eram verdadeiras valas comuns, e onde o gás mostarda fazia a decomposição da carne sem ter em conta qualquer limite acordado entre nações para uma suposta ética de guerra.
Este conto trata de um grupo de militares que, após dias de dolorosos combates em quadro de total abandono no terreno, se perde. Procurando um rumo, uma direcção para caminhar, deparam-se com semelhante grupo inimigo. Frente a frente, a morte de quase todos eles era o inevitável. A escassos metros de distância, nada os poderia salvar.
O inesperado surge, dando-nos uma visão romântica, claro, mas surpreendente do que as identidades pode conseguir. Estamos na Europa Oriental, depois de um século onde o antissemitismo tinha sido gerado em grandes preconceitos. Estamos, também, num quadro onde os judeus são vistos acima, ou além das nações. Esse bem comum, como que os leva para um denominador que os une: a humanidade, aliás, palavra várias vezes usada neste texto.
Deixo aqui o final desse conto, tendo alterado apenas uma ou outra gralha. De resto, tudo foi deixado como se encontra na edição indicada. Leiam, merece a pena, sob o ponto de vista de um sentido de Humanidade:

Exactamente no instante em que a tensão atingiu o seu ponto mais alto e o pesadelo se preparava para dar lugar a um sentimento implacável, Hershel Mak, incapaz de controlar os seus nervos esfrangalhados durante mais tempo, começou a rezar na língua dos seus antepassados. Shma Isroel! Shma Isroel! Os seus camaradas não o entenderam e olharam-no aterrorizados, como quem olha para um louco, mas do outro lado uma voz assustada e dolente respondeu-lhe em judaico:
- Um judeu!... Um judeu!
O coração de Hershel Mak caiu-lhe aos pés. A alegria louca que se apoderou dele é indescritível. Foi uma alegria humana sincera que o encheu até à borda, quando do lugar de onde esperava que viesse apenas a morte e ódio lhe chegaram palavras humanas e familiares. Esquecido do perigo de morte, caiu de joelhos, ergueu os braços e gritou, como se estivesse a responder a uma voz em pleno deserto.
- Eu!... Eu!...
Ouviu-se um tiro; mas apenas o boné de Mak tombou e caiu na poça de lama. Do outro lado do rio, uma cabeça típica, com as orelhas a aparecer por debaixo do capacete luzidio, fitou-o nos olhos.
- Não atires, não atires! – gritou Hershel Mak em russo, alemão e judaico tudo ao mesmo tempo, agitando freneticamente as mãos. E o outro judeu, envolto numa longa capa cinzenta, também gritava qualquer coisa aos seus colegas soldados. Agora, em vez de apenas um, eram cerca de dez os pares de olhos que estavam fixos em Hershel Mak, espantados e subitamente alegres. Uma esperança vaga e indefinida reflectia-se nesses olhares humanos assustados, que de repente se tornaram vulgares. Em seguida, Hershel Mak e o judeu de capa cinzento-clara avançaram pela clareira e, patinhando na água, correram, confiantes, um para o outro.
Pararam entre as duas fileiras de canos de espingardas ainda hostis e abraçaram-se, num acesso exagerado de felicidade.
- És judeu? – perguntou o soldado cinzento. Continuavam a olhar um para o outro, como dois velhos amigos que se encontram onde menos esperavam que isso acontecesse.
Ao entardecer, depois de os soldados recolherem os respectivos mortos e feridos, cada um seguiu o seu caminho ao longo da ravina, agora azulada com a neblina do fim do dia. Os da rectaguarda estavam sempre a virar-se para o inimigo, que os observava desconfiado, e a agarrar nervosamente com as mãos os canos das suas armas.
Só Hershel Mak e o judeu de capa cinzento-clara caminhavam calmamente. Hersehel tagarelava como um macaco, metendo conversa com um soldado, depois com outro. Falava sobre a alegria que o invadira, sobre a grande missão do judaísmo. Mas ninguém o escutava e um dos soldados até disse, bem disposto:
- Vai para o diabo, porco judeu.


terça-feira, 7 de maio de 2013

Da necessidade de um pós-Ecumenismo


Após o 11 de Setembro, o mundo acordou para a dramática realidade de uma nova forma de fazer terrorismo. Se até então o terror, esta forma de luta ilegal e fugindo ao controle dos grupos de nações e às convenções internacionais, tinha tido como alvo maioritário pequenos grupos humanos, agora a massificação era a palavra de ordem. Massificação dada pelo resultado dos ataques, mas também pela magna cobertura dos media.
O mundo das religiões deixou de ser estrita preocupação dos religiosos. Todos os dias a religião passou a ser tema presente nos noticiários. Todos os dias passamos a ver imagens de pessoas a morrer devido a questões apresentadas como religiosas. Como nas torres de Nova Iorque, nas discotecas em Bali, nos comboios de Madrid ou no Metro de Londres, percebeu-se que a religião fanática, extremada e irracional podia chegar a qualquer um de nós.
Durante décadas, a palavra de ordem fora a «tolerância», ao abrigo das ideias de ecumenismo. A verdade é que o paradigma do ecumenismo, em que a palavra «tolerar» significa exactamente o sentido da permissão excepcional, resumiu-se a simples manifestações em que as confissões, através de alguns líderes, mostraram conseguir estar juntas no mesmo local. O que se alterou a nível dos crentes e das suas práticas de ver os membros das outras religiões?
De facto, a palavra «tolerar», tão usada nas relações entre religiões, merece algum cuidado. Qualquer dicionário da língua portuguesa nos dá o seu campo de significado: “atitude de admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adoptada por si mesmo; acto de não exigir ou interditar, mesmo podendo fazê-lo; permissão; paciência; condescendência; indulgência”. Nada menos ... ecuménico, na medida em que o espaço dado para os outros é sempre referenciado em relação a si.
É que o Ecumenismo, tal como o temos visto ser realizado, choca com a visão que a esmagadora maioria dos seus crentes tem da sua própria religião: a Verdade que é superior às restantes e que deve ser levada (muitas vezes imposta) aos outros. E esta é uma contradição insuperável: como pode uma religião dar um lugar ao “outro” se tem como postulado vir a ocupar o seu lugar?
Donde, por esta entre outras razões, o Ecumenismo em nada levou a um desaparecimento dos grandes conflitos religiosos: ele apenas acontece onde já existem condições para que aconteça, onde os líderes religiosos já estão predispostos ao diálogo e ao convívio.
Mas mais, dia-a-dia, todos tomámos consciência de que o universo das religiões afecta e interfere com o normal mundo de todos nós, sejamos religiosos ou não: as religiões não são um problema nem um monopólio dos religiosos. A religião, fazendo parte de uma das faces mais expressivas da actividade humana, a todos diz respeito e coma  vida de todos pode interferir.
Ora, é neste sentido, no âmbito deste imperativo que se apresenta à nossa sociedade, que é necessário ultrapassar o bem intencionado e de extrema importância diálogo inter-religioso. O ecumenismo, como o vimos crescer em importantes movimentos nos anos oitenta e noventa do século passado, fechou-se no seio das religiões e, dentro delas, em grupos muito específicos. É necessário ultrapassar o universo das religiões e chegar ao da cidadania (onde se encontram religiosos e não religiosos).
Ao fazer esta rotação que é de «convívio» para «conhecimento», e de «crentes» para «cidadãos», superamos a tremenda falha que existe na noção de tolerar. Entre cidadãos, religiosos ou não, não há lugares de maior direito; todos são legalmente iguais e com os mesmos direitos e obrigações.
Esta alteração de enfoque e de forma de tratamento do fenómeno religioso actual cimenta-se no conhecimento que as diversas partes devem ter umas das outras. Membros de uma sociedade global e diversa, todos os cidadãos devem ter as ferramentas mínimas para efectuar a sua cidadania plena e consciente. Estrangeiros ou nacionais, cristãos católicos, ortodoxos ou protestantes, muçulmanos sunitas, xiitas ou ismaelitas, judeus, teosóficos, bahá’ís, hindus, budistas, xintuístas, confucionistas, taoistas, animistas, e muitos outros, todos se integram numa sociedade que é a portuguesa e, acima de tudo, todos se devem identificar num corpo que participa das suas decisões, que é constituído por cidadãos conscientes, exigentes e críticos.
Este desafio, o do conhecimento das religiões, façam elas proselitismo no campo alheio, ou abdiquem dessa sua vocação, aplica-se a todos os religiosos e não-religiosos. No fundo, um pós-ecumenismo que não anula, antes pelo contrário, o ecumenismo, e que apenas o tenta trazer para um campo de funcionalidade e abrangência mais significativo.



Jornal Público, 6 de Janeiro de 2007, p. 8.

Obama e o terror religioso


“A árvore da liberdade tem de ser renovada, de tempos a tempos, com sangue de tiranos e patriotas” 
T. Jefferson

Para muitos, estamos a viver tempos de apocalipse. De resto, o regresso a essas visões do mundo é recorrente e enquadra alguns aspectos comuns. Um deles, convenhamos, é o de nascerem nos EUA. Terra onde nasceram grande parte dos fundamentalismos cristãos contemporâneos, o American Dream está constantemente entrincheirado entre visões que, mais que o negarem, lhe retiram o oxigénio tão necessário à Liberdade que canta.
Hoje, no Verão de 2009, vivemos mais um desses momentos. A literatura que podemos encontrar na internet sobre o presidente Obama enquanto Anti-cristo, demónio, ou um destruidor dos valores messiânicos da América, é num volume assustador e numa variedade que nos deixa perplexos.
Obama é ameaçado de morte por manifestantes, por intervenientes em programas de televisão, etc, etc, etc. O clima de tensão entre os meios religiosos mais extremistas vai-se alimentando numa espiral que ninguém pode saber onde vai terminar.
A frase de Jefferson, que Timothy McVeigh pintara na t-shirt que vestia quando foi executado pela autoria dos atentados de Oklahoma, vai-se repetindo em tom de ameaça: “A árvore da liberdade tem de ser renovada, de tempos a tempos, com sangue de tiranos e patriotas”.
A mistura é explosiva e reúne a cor e o local de nascimento de Obama (será mesmo americano?), a fobia homossexual e o trauma comunista, tudo muito bem condimentado com uma visão conspiracionista que, como se sabe, nunca pode ser efectivamente contrariada porque a sua natureza reside exactamente nisso, é obscura e escondida.
É fácil encontrar sites de grupos religiosos cristãos fundamentalistas onde se diz que o presidente é racista e que quer lançar o país em Estado de Sítio para o poder manobrar e, afirmam, destruir.
É uma visão de fim dos tempos de uma nação que viu nascer muitos dos grupos religiosos que hoje em dia dizem que o fim do mundo está próximo, numa tradição apocalíptica que vem desde os movimentos adventistas de meados do século XIX.
Mas mais que perceber este clima de terror, que poderá, no limite, culminar com uma tentativa de assassínio presidencial, o que nos deve interessar neste momento é um dado tantas vezes escamoteado na política europeia: algumas ideias religiosas podem dirigir o mundo.
Não tenho medo das ideias religiosas, mas sim dos seus fundamentalismos que não olham a preço para destruir o mundo, criando o “seu” mundo. Porque, sim, não tenhamos dúvidas, estes fundamentalistas americanos acusam Obama de querer destruir os EUA, mas eles é que os irão destruir.

Massificação e incultura religiosa


Nas últimas dezenas de anos deram-se importantes alterações no mundo da vivência da religião. Entre antropólogos, sociólogos e filósofos das religiões, nasceram conceitos como os de “erosão das identidades religiosas”, “religiosidades difusas”, ou mesmo, expressões quase impossíveis de traduzir para português como a noção de – pela falta de melhor - “turista religioso”.
Estas ideias aplicam-se a todo o renascimento religioso nas décadas de setenta do século XX, um ressurgimento que se manifestou em formas e atitudes totalmente novas: fuga aos movimentos / igrejas convencionais ou tradicionais; fácil deambulação entre credos e filiações; criação de uma atitude de pesquisa individual.
Ora, é neste contexto de afirmação da possibilidade e da liberdade de cada um fazer o seu percurso, preferencialmente atípico para auto-demonstração da singularidade, que se devem entender os fenómenos de massificação de obras sobre o fenómeno religioso. E referimo-nos aos livros de Paulo Coelho, de Dan Brown, ao filme de Gibson, a toda uma miríade de categorizações biblioteconómicas com que nos cruzamos nas estantes das nossa livrarias, que vão da espiritualidade ao esoterismo, passando pelo que no Brasil se chama de “auto ajuda”.
Resultante de um movimento totalmente livre de pesquisa religiosa, nasceu um imenso campo, um enorme nicho de mercado, onde cabe tudo o que afirme ser contra os ditames tradicionais. É essa a pedra de toque de quase todos estes fenómenos: afirmar que vão contra o instituído, criando, assim, a ilusão a muitos dos seus leitores de participação nesse desmontar de supostas fraudes milenares ou de viver experiências espirituais até então quase inacessíveis.
Talvez se possa, mesmo, alinhar todo este universo de produção bibliográfica em dois grandes campos. Por um lado, os livros que transmitem supostas vivências religiosas, espirituais e místicas até então vedadas; Por outro lado, as obras que, voyeristicamente, levam os leitores a viver um desmontar das grandes estruturas religiosas (nada mais voyerista neste universo que entrever nas páginas de um livro a possibilidade do acto sexual entre Jesus e Maria Madalena, por exemplo).
Em ambos os casos, o essencial é que este retorno ao sagrado, resultante de uma pesquisa individual não mediada por entidade alguma, levou a um boom editorial e ao facto de a religião estar na moda – os acontecimentos pós 11 de Setembro vieram consolidar este fenómeno.
Massificaram-se as leituras sobre religião. Os best sellers estão ai, mês após mês. Mas a cultura religiosa da população é cada vez mais baixa. Alguns museus, por exemplo, estão a adoptar descrições e explicações temáticas nas legendas de pintura sacra, respondendo à incapacidade dos visitantes compreenderem as situações retractadas.
E é cada vez mais baixa a cultura referente ao mundo religioso porque estes livros em nada a constróem, antes pelo contrário. Mas também porque não existem instrumentos que forneçam à generalidade da população informação credível e atractiva que venham colmatar o fim da massificação das catequeses.
Até há duas ou três gerações, quase toda a população tinha uma cultura religiosa mínima que advinha da obrigatoriedade da catequese no sistema de ensino. Era uma cultura facciosa, pobre, não especulativa. Mas neste momento ela simplesmente não existe.
Não é que se possa, em condição alguma, defender o regresso a esse sistema, mas urge tomar consciência de que no mundo das religiões se criam ideias feitas com a maior das facilidades, julgando que se está perante grandes e inquestionáveis verdades – porque essa é uma das vocações das religiões, agora transportada para a função da literatura: a de criar discursos de verdade.
Quantos de nós sabemos a que correspondem alguns dos feriados religiosos de que gozamos durante o ano? Esta é a faceta anedótica. Mas existem outras. O actual mundo de fundamentalismos religiosos é em grande parte alimentado por esta massificação da incultura religiosa.
Nada haveria a apontar a livros como os antes referidos, se eles não levassem o leitor, ou melhor, se o leitor não fizesse com o livro o percurso de criação de uma visão do mundo. E estas visões romanceadas, mas tidas como verdade por muitos leitores, são essencialmente fundamentalistas porque apresentam o mundo das religiões em tons altamente contrastados; uns são bons, outros são maus.
Nesta mecânica demonizante de parte da realidade, a simplicidade dá lugar ao simplismo. Longe de se estar a evoluir para um mundo com uma compreensão crítica sobre as religiões, cimentada na reflexão e no rigor, estamos a caminhar para uma crescente postura de anulação da tal individualidade que esteve na base deste surto bibliográfico.
Dominadoras, estas narrativas empolgantes que levam o leitor a vivenciar o que nunca tinham imaginado possível, castram o lugar do leitor no processo da leitura. Tudo é tão simples, tão óbvio, tão elementar, que o leitor simplesmente lê, acredita e reproduz.

 Jornal Público8 de Junho de 2006, p. 8.

... Jesus Christ, a super star!


Depois do alarido em torno do Evangelho de Judas, publicado em Portugal no início do verão passado (em duas edições, uma pela Ésquilo com tradução do original por Antonio Piñero e Sofía Torallas-Tovar), os media retomam a temática do Jesus histórico, lançando para os noticiários e as primeiras páginas dos jornais uma situação que surge como totalmente nova e provida do dramatismo típico dos assuntos que tudo colocam em causa. Contudo, a questão é bem mais complexa e merece alguns cuidados no seu equacionamento.
Em primeiro lugar, há que perceber que o Ocidente cristão desde há muito se habituou à ideia de que Jesus morrera e, porque ressuscitara e subira ao céu era, de facto, o Salvador. Esta ideia é tão profundamente enraizada que, muitas vezes, se refere Cristo, o epíteto, e não Jesus, o nome. Mesmo os não crentes comungam, muitas vezes, desta visão historicista da ideia de Salvação.
Em consequência deste aspecto quase civilizacional, foi muito tarde que se escreveram os primeiros arremedos de biografias de Jesus, textos que tentavam lançar luz sobre o homem de nome Jesus que, por razões várias, uma parte da humanidade tomara por Deus, fosse-o ou não. A estranheza neste novo olhar sobre Jesus, com este novos olhos não confessionais, era tanta que Renan, autor de La Vie de Jésus (Paris: Michel Levy Freres, 1863), perderia por esse motivo o seu lugar no Collège de France. De facto, o assunto muito coloca aparentemente em causa.
A questão é tão central na nossa própria formulação civilizacional, que não será por acaso que é exactamente neste momento que Bento XVI se prepara para lançar um livro sobre esta temática do Jesus sob o ponto de vista histórico.
Mas nem sempre foi assim: nem sempre esta religião teve como central a ideia de um salvador que ressuscita e, consequentemente, não existe (Não pode mesmo existir, ou não tivera subido aos céus) enquanto defunto.
Ou seja, interessa verificar que esta religião não nasceu como agora se nos apresenta. O nome «cristãos», os que seguem Cristo, nasceu em Antioquia já na época de Paulo - o principal divulgador do Cristianismo que, contudo, não conheceu Jesus. Como grupo autónomo do judaísmo, esta nova religião teve origem no espaço grego ou, pelo menos, judaico em diáspora, falante de grego e já não de hebraico. A ideia messiânica que está na base do nome da religião, kristos, a palavra que servirá como epíteto a Jesus, grafando-se «Jesus Cristo», é grega e não hebraica. Não é por acaso que a religião passou para o futuro com a designação de «Cristianismo» e não de «Jesuísmo» ou «Messianismo».
E isto não quer dizer que ao hebraismo fosse estranha a ideia de ressurreição como evidência da ideia de salvação. Ela era comum, quer a judeus, quer a gregos. Mas o caminho da ideia de salvação não se fazia apenas na dependência da ressurreição. Outras vias surgem significativamente claras em alguns textos não canónicos: os Evangelhos de Tomé e de Judas.
Nesses dois textos, verificamos que, em torno da ideia de Jesus, não existe a necessidade da morte e ressurreição. Aqui constatamos que, para algumas das comunidades primitivas de seguidores de Jesus, a ressurreição não era tida como necessária para se constituir um corpo de crença com os seus seguidores. A morte e ressurreição, para alguns crentes, não era central e, talvez, nem sequer a imaginassem.
Naturalmente, nunca poderemos saber qual a representabilidade relativa desta postura teológica. Supomos que, tendo em conta que a norma que vingou veio a ser a visão fundamentada no Cristo, aquele que ressuscitou, estes grupos fossem minoritários. Mas a verdade é que existiam e, em especial, não era por não acreditarem na ressurreição que deixavam de ver em Jesus o Filho de Deus... caminhos estranhos os da História
Enfim, neste modelo, é totalmente natural imaginar para a figura de Jesus um quadro familiar como, aliás, algumas tradições nos legaram. A ideia de que teria irmãos, assim como a de que teria vivido com Madalena, não é apenas criada por Dan Brown....
Ora, a questão hoje continua a ser complexa e, acima de tudo, incómoda. A eventual descoberta de um túmulo com sarcófagos e ossadas de um suposto Jesus e seus familiares aparece (e assim é apresentada) como a prova de uma grande mentira. Procuram-se testemunhos, leituras, opiniões... tudo é conduzido no sentido de procurar uma ideia de farsa por detrás da actual maior religião do planeta.
Os cristãos da Idade Média, que acreditavam nas lendas da vinda de Maria Madalena para o Sul de França, não deixaram de acreditar em Jesus pelo facto dele lhes ser apresentado como um homem que, como quase todos os outros, procriou. Os gnósticos das comunidades de finais do século I, que fizeram o Evangelho de Judas, não eram menos crentes em Jesus que os que seguiam os textos de Lucas, Marcos, Mateus e João que no século seguinte foram declarados canónicos.
Será que os cristianismos actuais, quer o católico, quer o evangélico (este, muitas vezes profundamente fundamentalista e quase nada crítico em relação à literalidade dos textos), conseguirão não se sentir abalados com estas descobertas, sejam elas verdadeiras ou não?

 Jornal Público22 de Abril de 2007, p. 47.

Trocamos competências relacionais por crédito internacional


Todas as sociedades são compostas por elementos em equilíbrio. Mais ou menos estáveis, esses equilíbrios funcionam como ecossistemas em que cada parte tem um lugar e uma função mais ou menos determinada. Com um lastro de identidades e com uma parcela regrada de liberdade, esses ecossistemas em que os humanos se gerem conseguem criar algum espaço para a evolução.
De facto, esse espaço de liberdade e de criatividade é, normalmente, definido em torno de objectivos. No caso das migrações, esses objectivos podem ser do foro profissional ou criados por motivos de sentimento de culpa e de espoliação. Escassa é a parte de uma colectividade humana que deseja, em si mesma, a miscigenação. Essa mistura, a multiculturalidade, aceita-se, regra geral, por moda, porque tal é politicamente correcto, ou porque ela é imposta por uma norma superior.
Apenas o passar dos anos consolida a relação e destrói a estranheza do confronto com o outro. Apenas políticas sólidas de integração conseguem ir contra essa reacção quase doentia que é a repulsa ao que é diferente.
Em Portugal, graças a dinâmicas de diversa ordem, em muito, devido a correctas políticas de integração, os imigrantes são geralmente bem aceites e não encontramos em território nacional focos de discriminação negativa. Antes pelo contrário, há hoje a noção exacta da parcela do PIB que é criado devido a essa gente que buscou em terras lusas melhores oportunidades.
A restante Europa, se bem que com orçamentos bem mais consolidados, não pode apresentar os resultados positivos de que nos devemos orgulhar. Quer a França, quer a Alemanha, seguindo a Suíça da famosa banca, parecem não ter conseguido fazer o seu “trabalho de casa” no que respeita à integração dos imigrantes.
Os caminhos que se parecem começar a trilhar são, não de complexidade alguma, mas da mais simples linearidade: onde iremos com as políticas que materializem as afirmações como as de Merkel, no passado dia 16?
Sim, a multiculturalidade alemã parece estar de muito má saúde. Mas, todo o discurso da Chanceler incendeia e dá foro de legitimidade às mais racistas posturas.  A Europa, começando pelas suas duas cabeças, parece não ter compreendido o quão necessita de imigrantes. Num quadro de quebra populacional, ou nos conformamos com o facto de muitas tarefas ficarem por realizar, de muitas empresas fecharem por falta de mão-de-obra, ou pegamos no problema e fazemos (mais vale tarde, que nunca) políticas que os integrem.
Talvez fosse interessante olhar para este endividado país e, por uma vez, imitar o que por cá se fez. Quem sabe se podemos trocar esse know how por umas décimas nos juros da dívida…

Jornal Público, 27 de Outubro de 2010, p. 37.

Anti (semitismo - judaísmo - israelismo – sionismo): algumas diferenças


Num momento em que a guerra de Israel contra o Hezbolah parece já não vir a ser um conflito relâmpago, uma incursão cirúrgica, urge olhar para as palavras que usamos com um cuidado redobrado, fugindo à leveza da fugacidade das realidades passageiras.
De facto, no actual mundo do fast food intelectual e cultural, assistimos constantemente ao abusivo uso de determinados conceitos, de vocábulos que nasceram com definição clara do seu sentido mas que, pelo seu uso muitas vezes irresponsável, o perderam por completo, lançando um caos pantanoso onde tudo pode ser dito.
Não se trata de um purismo linguístico, mas sim de um esforço que é necessário fazer para afastar muitos mal entendidos e muitos juízos de valor.
E é importante tratar as realidades com os nomes que, de facto, se lhes aplicam, porque os nomes, as palavras, querem dizer alguma coisa, criam nuances de sentido, subtilezas de pensamento. A generalização de certas expressões que deixam de ter um sentido claro é uma das mais profundas provas de iliteracia.
O caso dos quatro vocábulos usados em título é significativamente importante porque nos obriga a um exercício de pensamento em que se separam fenómenos diferentes. Sem se compreenderem, nas suas especificidades, esses fenómenos, podemos estar a lançar os conflitos para campos ainda mais dramáticos, criando assim uma nova conflituosidade.
Esta conflituosidade criada nas opiniões mediante o uso de certas expressões, pode levar a reacções extremadas por parte de grupos islâmicos e judaicos, dificultando o diálogo e lançando ainda mais discórdia: o uso errado de certas palavras leva-nos para um horizonte de criação de uma guerra virtual em torno de judeus, islâmicos e “ocidentais”.
Historicamente, o «anti-judaismo» nasceu primeiro. Baseado na ideia de que os judeus mataram Jesus, o Cristo, o Deus Vivo, criou uma mácula que se estendeu por dois milénios. Culpados do deicídio, os judeus foram perseguidos por praticarem uma religião que conduziu a esse crime máximo, constantemente considerados um dos males do mundo.
O «anti-semitismo» difere da noção anterior porque perdeu a carga religiosa e se abriu ao horizonte cultural mais largo do mundo semita. Um anti-semita não persegue um judeu porque ele pertence a uma religião, a um grupo humano, que optou por matar Jesus.
O anti-semitismo existe porque vê nos judeus os descendentes de uma raça inferior, os semitas. Ora, duas considerações há a fazer: 1) este fenómeno está plenamente enquadrado numa Europa que não integrou as comunidades judias, e que via nelas algo de exterior a si mesmas (os semitas não eram europeus, eram asiáticos); 2) esta palavra teve maior expressão aplicada a judeus, mas designava genericamente todas as populações com origem no Médio Oriente, incluindo árabes e islâmicos.
Desta forma, o que se passa em Israel, na Palestina e no Líbano nunca pode ser designado como anti-semitismo: ambos, palestinianos e israelitas, são semitas.
Donde, é a noção de «anti-israelismo» que deve ser lançada em campo em detrimento da anterior. E este campo já pouco tem a ver com a religião, já pouco tem a ver com a visão de raças inferiores, em tudo tem a ver com uma delimitação de um estado, em tudo tem a ver com a definição das fronteiras e com as resoluções da ONU que obrigavam Israel a confinar-se a uma determinada linha fronteiriça.
Ser anti-israelita não implica uma posição antisemita. Um dos «anti» é de natureza “rácica”, o outro, é de natureza política.
Mas, obviamente, nada é linear. Transversalmente, há ainda a ideia de «anti-sionismo», conceito de mais difícil definição. O moderno sionismo nasce no século XIX e tem como objectivo o restabelecimento de uma pátria judaica no espaço do antigo Israel. Muito do anti-semitismo do século XIX nasce por oposição às linhas de poder de grandes famílias judias que fomentaram esses discurso de regresso à Palestina.
Para muitos, esse regresso implicava um domínio completo e total da região, e não apenas de um território mais pequeno. Pretendia-se, miticamente, alcançar os vastos domínios de David e de Salomão, recriando uma certa ideia de império, de domínio muito acima do nacional.
Complexificando ainda mais um pouco, o facto de o Estado de Israel ser um Estado Judaico, e de os judeus pelo mundo fora se sentirem solidários com essa nação (muitas vezes com dupla nacionalidade simplesmente por serem judeus), provoca o esbatimento dos conceitos anteriores. Por analogia, as reacções às comunidades judias fora de Israel são como que um ataque a Israel na medida em que há uma relação próxima entre essas duas realidades.
Muito se ganhava se as palavras fossem usadas correctamente. Muito do que de conflito latente se tem criado na Europa poderia ter sido talvez evitado, ou amenizado, se quem escreve ou fala sobre estas questões não falasse, por exemplo, constantemente em anti-semitismo, relançando um fantasma que, agora, quase não existe. Se continuarmos a falar tanto dele e da forma como o temos feito, talvez o ressuscitemos ...



Jornal Público, 13 de Agosto de 2006, p. 7.