quarta-feira, 16 de julho de 2025

"Ler Lolita em Teerão", ou como a literatura pode salvar


 

Para mim, ir ao cinema raramente um ato de puro passar o tempo. A escolha do filme não tem lugar perante a lista do que está em cartaz. A decisão parte sempre de um tema, um assunto que me cria interesse. Só por isso vou ver um filme. Assim se passou com o "Ler Lolita em Teerão", com que me cruzei num cartaz e, só pela imagem e pelo título, percebi que teria em si um quadro da máxima acuidade para o tempo que vivemos. 

O recente filme de Eran Riklis, com Golshifteh Farahani no papel principal, surge num momento muito especial da relação do mundo ocidental com o Irão, no quadro de uma repressão tremenda que o regime executa sobre a população, especialmente sobre as mulheres. Vimos, há não muitos anos, um movimento de mulheres que se manifestavam retirando os véus. Vimos a forma como essas mulheres foram castigadas, num regime que, mais que fundamentalista, coloca a mulher numa condição brutal.

Neste filme, vemos como uma jovem professora de literatura vai vendo o crescimento da repressão após 1979. Mas vemos mais: vemos como um grupo de jovens resiste, tendo aulas verdadeiramente secretas em casa da informada mestre. 

O regime é acompanhado através da vida destas mulheres, em que cada uma vive a sua resistência de forma diferente. Com formas distintas, cada uma encontra na leitura e no comentário a alguns clássicos, um gesto, um ato de liberdade.

E é aqui que a literatura triunfa, na medida em que é pensamento e consciência, tudo num ato apenas.

A não perder, este filme mostra-nos muito do que é um Irão escondido, exilado, acabrunhado dedaixo do medo. Mas existente.


terça-feira, 8 de julho de 2025

S. João de Verão, o Batista (uma experiência espiritual em Varsóvia)


Com um passo apertado, três freiras passaram do outro lado da rua. Estávamos sentados na esplanada do hotel, no início do centro histórico de Varsóvia. Depois de algumas palavras sobre a catolicidade da Polónia, decidimos ainda aproveitar o final de tarde numa primeira visita ao casco histórico. As cores que o fim do dia dava às edificações centenares, apelava a um passeio sem destino definido. Tudo vibrava e cintilava à nossa frente.
Embrenhados nas ruas estreitas, rodeados de banais turistas como nós, vimos as ementas de um ou dois restaurantes, olhámos para o interior de uma loja de lembranças. Era cedo para ambas, fosse para o jantar dessa noite, fosse para as recordações da despedida. Era em chegada e descoberta que pensávamos.
Ao longe, já uma fachada alta, claramente uma catedral, nos despertara interesse. Agora, demos por ela num olhar fugidio através de uma viela. Encoberta pelos edifícios circundantes, estava mesmo ali ao lado. Não era um destino eleito, mas sabíamos que a ela iríamos dar, mais volta, menos volta. Agradados pela descoberta e pelo aparente acaso, seguimos, cruzando em contra corrente uma horda de turistas.
Dois dias depois, ficaríamos a saber que quase todo o edifício era uma reconstrução do pós-guerra. A Arquicatedral de S. João fora totalmente destruída nessa guerra brutal. O tom gótico estava marcado na traça, mas tudo era um novo que tinha como missão não deixar que se sentisse falta da anterior, apesar de nos fazer isso mesmo, porque outra. Mas quando entrámos, nada disto sabíamos. Éramos folhas brancas que aguardavam ser escritas. Apenas depois percebemos ser dia 25 de junho, dia imediatamente depois do dia dedicado ao santo que dá nome à  catedral.
Apesar de não sermos católicos, entrámos respeitosamente no templo, como sempre. Mas o respeito exponenciou-se de imediato como um grande espanto. Após dois passos, estancámos ao lado da primeira grande coluna, e fomos invadidos, verdadeiramente, pelo espírito do local. 
Em destaque, no altar, uma custódia apresentava aos crentes o motivo de veneração. Seráfico, quase como uma estátua, um sacerdote estava ao centro do corredor central, perto do altar, ajoelhado, em profunda oração. Duas filas atrás, as três freiras que víramos antes, marcavam presença entre os devotos. Mas tudo isto seria um quadro normal se um som intenso, mas harmonioso, não dominasse toda a cena.
Coladas às portas centrais da catedral, no início da nave, três mulheres enchiam o espaço com uma reverberação tão intensa que parecia ser o próprio edifício a cantar esse mantra que deixa de saber onde começa e onde termina a matéria. Era um cântico simples, que repetia invocações numa sequência de notas que não terminava. Era a ciclicidade na criação de um quase estado alterado de consciência. Ali ficámos, incapazes de movimento.
Presos ao som, ao ambiente, à força e à beleza emanada, fomos invadidos, simplesmente. Se Ulisses se mandara amarrar ao mastro do navio para resistir ao canto persuasivo, nós amarraramo-nos, com grande e proveitoso prazer, a essa coluna que nos deixava como que protegidos do olhar direto destas vozes de tom profético. Tudo iria correr bem nesta estadia em Varsóvia. Esta recepção apenas poderia isso significar, marcando os dias seguintes com muitos e proveitosos momentos.