sábado, 21 de dezembro de 2013

Ciclo do Natal - 2 (Adoração dos Reis Magos)


ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS


1 E, tendo nascido Jesus, em Belém de Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram, do oriente, a Jerusalém, 2 Dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no oriente e viemos a adorá-lo. 3 E o rei Herodes ouvindo isto, perturbou-se, e toda Jerusalém com ele. 4 E, congregados todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo. 5 E eles lhe disseram: Em Belém de Judeia; porque assim está escrito pelo profeta: 6 E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há-de apascentar o meu povo de Israel. 7 Então Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exactamente deles, acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera. 8 E, enviando-os a Belém, disse: Ide e perguntai diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore. 9 E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela que tinham visto no oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. 10 E, vendo eles a estrela, alegraram-se muito com grande alegria. 11 E, entrando na casa, acharam o menino com Maria, sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra. 12 E, sendo por divina revelação avisados em sonhos, para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.
Mateus 2, 1-12

Oficina de Vicente Gil (doc. 1498-1525) e Manuel Vicente (doc. 1521-1530)
Pintura: óleo sobre madeira de carvalho, 1500-1525, Alt 96 x Lg 69 cm
Museu Nacional de Machado de Castro

Proveniência: Mosteiro de Santa Maria de Celas, Coimbra


Autor desconhecido [Lisboa], (sec. XVIII)

Painel de azulejos (barro vidrado, majólica), c.1760-70, Alt 197,6 x Lg 293 cm

Museu Nacional do Azulejo 


Manuel Gomes de Andrade (sec. XVIII)
Pintura, óleo s/tela, 1733-1734, Alt 281 x Lg 186,5,
Museu de Alberto Sampaio


Grão Vasco (1475/1480 - 1542) e Francisco Henriques (act. 1500-1518)
Pintura (retábulo): óleo sobre madeira de carvalho, 1501-1506, Alt 131 x Lg 81 espessura
Museu de Grão Vasco
Proveniência: Sé de Viseu

Este grupo de quadros mostra-nos uma das mais interessantes e inovadoras cenas que Mateus nos apresenta. De facto, este episódio surge apenas neste evangelhos, sendo os outros três totalmente omissos a seu respeito. Os nomes destes homens vindos de oriente, o seu número de três, e a intitulação de Reis, vêm de tradições extra-bíblicas. Aqui, em Mateus, são apenas «uns magos […] do oriente».

A sua função neste texto é dupla. Por um lado, ajudam a colocar historicamente a narrativa, relacionando-a com um monarca, Herodes. Por outro lado, trata-se de um recurso de escrita, que permite introduzir, logo no início do texto, o sentido messiânico e de rejeição de que Jesus será alvo. Com estes magos, é-nos dito que até os pagãos adorariam o Messias judeu, como que afirmando a universalidade da sua salvação, já não apenas para o Povo Eleito, em detrimento das autoridades que o rejeitariam.

E essa prefiguração do que conduzirá Jesus à morte está ainda mais completa, como podemos perceber com um olhar mais cuidado para este excerto: para além de já estar criado o quadro em que Jesus não terá o apoio das autoridades, no confronto e no questionamento de Herodes temos a afirmação da realeza de Jesus, o que, no final da sua vida, será o fulcro da acusação que o leva à morte na cruz, onde se dizia, como que confirmando os medos de Herodes: “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”.

Mas o centro destes quadros reside em dois pólos de sentido, um deles com ecos especiais na cultura portuguesa. Por um lado, esta cena é a imagem perfeita, através dos «magos» transformados também em «reis», de que os monarcas prestam tributo a Jesus. Por outro lado, este trecho bíblico, remetendo o leitor para o universo do exótico oriental, foi o receptáculo ideal para a representação do “outro”, a novidade da variedade humana que os Descobrimentos trazem para a Europa.

O quadro que aqui temos da oficina de Vicente Gil e Manuel Vicente, centrado na tradição de figuração dos magos, retratados como reis, lança os dois campos de problemáticas antes apontados. Por um lado, os ditos magos são, em toda a imagética a eles aplicada, monarcas, na sua estrita acepção. Por outro lado, o rei negro, dando-nos a proximidade às conquistas em África, apresenta iconograficamente um objecto de grande significado: como que personificando o então famoso Preste João - o rei etíope que ajudaria o reino na afirmação do seu poderio – este Rei Mago tem nas mãos uma oferenda que em tudo nos faz lembrar a esfera armilar que com D. Manuel passa a fazer parte da iconografia real.

Na pintura portuguesa, muito mais que na restante pintura europeia, o rei negro ganhou um lugar que nunca mais foi posto em causa. No painel azulejar de setecentos, ele lá está com uma coroa exótica que nos faz lembrar mais penas que metal. No quadro desse mesmo século, o toucado é retomado como remate da cabeça, mas a cor da pele mantém-se.

No quadro de Grão Vasco, pintado cerca de dois anos após o “achamento” do Brasil, encontramos o mais interessante exemplo da função desta cena bíblica como campo de experimentação na representação do “outro”. De facto, neste quadro temos, na figura de um dos Reis Magos, a primeira imagem europeia de um índio sul-americano, fazendo-nos crer no que pareceria impossível, apenas um ou dois anos depois da chegada ao Brasil: Vasco Fernandes parece ter visto, de facto, um índio, pela forma pormenorizada como o pinta. São seus atributos: um toucado de penas, inúmeros colares de contas coloridas, manilhas de ouro nos pulsos e nos tornozelos, brincos de coral branco e, até, uma flecha tupinambá com o seu longo cabo.


Rematando o comentário a este excepcional episódio, dos mais reproduzidos na pintura portuguesa, retomemos a questão da ideologia régia. Vejamos que dos três Reis Magos, um surge sempre em primeiro plano, algumas vezes a tocar ou muito mais próximo de Jesus. Quem é ele? Ora, sem nome que se lhe possa dar, podemos afirmar que esse Rei Mago, sempre mais próximo de Jesus, é também aquele que sempre é representado de forma mais europeizada. Em todos estes quadros, sem excepção, esse monarca é sempre vestido com parte significativa da roupagem que teria exactamente o rei português na época. Veja-se o caso do quadro contemporâneo de D. Manuel, pintado por Grão Vasco, ou, ainda mais significativo, o do século XVIII, pintado na época de D. João V, que aqui se apresenta, com manto púrpura, ajoelhado na típica posição de vassalagem, como que a prefigurar o título de «Fidelíssimo», que viria a receber da Cúria Papal uma dezena de anos depois.

Retirado do meu livro A Palavra pela Imagem, edição dos CTT.
Aos CTT e à equipa da Filatelia, o meu reconhecido agradecimento por ter podido levar ao prelo um livro com tamanha qualidade editoria.


Ciclo do Natal - 1 (Adoração dos Pastores)


ADORAÇÃO DOS PASTORES


8 Ora havia, naquela mesma comarca, pastores que estavam no campo, e guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho. 9 E eis que o anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de resplandor, e tiveram grande temor. 10 E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo: 11 Pois, na cidade de David, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. 12 E isto vos será por sinal: Achareis o menino envolto em panos, e deitado numa manjedoura. 13 E, no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus, e dizendo: 14 Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens. 15 E aconteceu que, ausentando-se deles os anjos para o céu, disseram os pastores uns aos outros: Vamos, pois, até Belém, e vejamos isso que aconteceu, e que o Senhor nos fez saber. 16 E foram apressadamente, e acharam Maria, e José, e o menino deitado na manjedoura. 17 E, vendo-o, divulgaram a palavra acerca do menino que lhes fora dita; 18 E todos os que a ouviram se maravilharam do que os pastores lhes diziam. 19 Mas Maria guardava todas estas coisas, conferindo-as em seu coração. 20 E voltaram os pastores, glorificando e louvando a Deus, por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes havia sido dito.
Lucas 2, 8-20

Marçal de Matos [atribuída], sec. XVI
Painel de azulejos (barro vidrado, majólica), c.1580, Alt 465 x Lg 500 cm 
Museu Nacional do Azulejo
Proveniência: antiga Igreja de Santo André, Capela de Nossa Senhora da Vida, Lisboa 



Josefa D’Óbidos (1630-1684)
Pintura: óleo sobre tela, 1669. Alt 150 x Lg 164 cm
Museu Nacional de Arte Antiga
Proveniência: Convento arrábido de Santa Maria Madalena (Alcobaça)


 Mestre de 1515 (Jorge Afonso?), (sec. XVI)
Pintura (óleo sobre madeira de carvalho): retábulo da Igreja da Madre de Deus, c. 1515, Alt 160,5 x Lg 124,5 cm
Museu Nacional de Arte Antiga
Proveniência: Igreja da Madre de Deus, Lisboa

A chamada Adoração dos Pastores é um marco na construção da imagem do Cristo enquanto menino. Se Mateus coloca uns magos de inspiração babilónia a adorar Jesus, Lucas prefere, numa lógica mais pueril, centrar-se na figura dos pastores.

No imaginário colectivo, esta cena ganhou destaque e um lugar de carinho que poucas outras adquiriram no quadro largo da vida de Jesus. Se há peças obrigatórias na tradição do presépio, elas são os pastorinhos que tanto cativam a atenção das crianças na época natalícia.

Quem são estes pastores, que em tantas representações surgem a ofertar ao menino “Messias Senhor” o que de melhor têm: os produtos da terra, do seu gado, e do seu trabalho? Nada há de acaso nesta descrição bíblica. Em primeiro lugar, nunca nada há de acaso nos textos de Lucas. De facto, este possível discípulo de Paulo, médico de profissão, era um inquiridor nato que declara os primeiros versículos deste Evangelho tudo ter indagado para produzir um texto, diríamos hoje, sustentado e rigoroso.

Os pastores são induzidos para a acção. Os anjos aparecem-lhes, informam, e prescrevem a visita. Porquê, então, os pastores, com tantos outros grupos possíveis para colocar a adorar Jesus? É que os pastores são plenos de significados importantes para o nascente cristianismo. Se pensarmos que o texto descreve uma cena em ambiente judaico, então os pastores são os que se afastam da cidade, que trabalham com gado impuro, são a imagem dos mais pequenos e frágeis a quem Jesus se vem apresentar.

Mas o sentido do texto é mais rico: tendo em conta que o público-alvo deste texto de Lucas era, assumidamente, o grupo dos recém-cristãos gregos, então ser pastor tem outros ecos, não tão negativos mas muito mais fortes em termos religiosos. A imagem do pastor remete para a espiritualidade, para a purificação. Por exemplo, Hesíodo, o pai da poesia grega, era pastor. Estamos, claramente, no caminho da imagem do Bom Pastor, uma das imagens mais ricas em termos teológicos e espirituais.

Perante público-alvo tão específico neste texto de Lucas, já com algum conhecimento do cristianismo e culturalmente helenizados, é de notar que é neste texto que é usada a caracterização de Jesus como o «Messias Senhor», uma forma de afirmar, inquestionavelmente, a realeza de Jesus como messiânica. Se no episódio dos chamados Reis Magos se coloca a imagem da realeza a adorar o menino Jesus, aqui são colocados os mais simples na mesma função. De ambos Jesus recebe tributo.

E é também de tributo que temos de falar quando olhamos para este episódio, profusamente pintado na arte portuguesa. De facto, e apesar de nada o texto bíblico dizer sobre as oferendas dadas à Sagrada Família, nenhum dos pintores optou por seguir esse desprendimento do texto. Efectivamente, e como que reproduzindo a atitude que se esperava perante as instituições da Igreja, os pastores, quais camponeses dos séculos XVI ou XVII, oferecem ovos e animais da sua produção.

A cesta de ovos, que nos faz lembrar tão bem a riqueza dos doces conventuais, surge em grande plano no grupo azulejar que apresentamos. Trata-se de uma obra-prima da produção nacional de quinhentos, e estava integrado numa figuração de retábulo de marcenaria lavrada, na capela de N. Senhora da Vida. Significativamente, ladeando esta representação central, estavam S. João Batista e, com toda a naturalidade, o próprio evangelista que retrata esta cena, Lucas.

No quadro de Josefa de Óbidos, um século mais tardio, os cestos são já em número de dois, sendo ainda oferecido um cabrito. Estas oferendas ganham, nesta obra, um grande cuidado por parte de uma pintora que teve nas naturezas mortas um dos seus campos mais profícuos de produção.


Regressando ao século XVI, no quadro do Mestre de 1515, temos novamente uma figuração que se afasta do actual estereótipo da gruta, preferindo-se a ruína, ao mesmo tempo que temos um significativo e pormenorizado vislumbre sobre os instrumentos musicais de início de quinhentos. Também neste caso, as ofertas da lavoura, mais propriamente, os ovos, estão presentes, como que lembrando aos crentes, quase todos eles agricultores, que deveriam repetir esse gesto supostamente iniciado mal nascera o Salvador.

Retirado do meu livro A Palavra pela Imagem, edição dos CTT.
Aos CTT e à equipa da Filatelia, o meu reconhecido agradecimento por ter podido levar ao prelo um livro com tamanha qualidade editoria.



quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mandela | Vida

Numa vida inteira que viva, não deverei conhecer ninguém como Mandela. É hoje uma marca de egoísmo que tenho e que quero afirmar na minha pequenez. Não conheci Mandela. Dificilmente no meu tempo, entre os vivos, aparecerá outro ser humano da sua grandeza.
                                                    
Apenas posso falar disso que é um não conhecer. Mas tantos são os “que não conhecemos” que nos entram por casa dentro nos noticiários! Com Mandela era diferente. Ele não nos entrava pela casa dentro. Ele sorria à porta e pedia licença.
                                             
Que história de vida, e que capacidade para nunca abandonar aquele sorriso que lhe marcava sempre o rosto. Ao mesmo tempo frágil e tenaz, Mandela era uma imagem que cativava pelo que ela representava de impossível. Ele era Utopia transformada em pessoa, em ser, e em colectivo.
                                                 
A História, todos a sabemos. Da luta, da prisão, da liberdade, da unidade, dos desafios e da construção de uma Nação. E exactamente porque todos a sabemos é que ela é de uma magnitude que foge ao comum dos estadistas. É que Mandela não era um estadista. Ele era muito mais, era um líder que interpretava, de facto, um povo e um pais.
                                                    
E era um líder, não dos que lideram porque vencem eleições, mas dos que lideram porque a sua acção faz com que todos nele vissem uma capacidade e um exemplo acima de todas as definições da acção política.
                           
A África do Sul não está de luto. Bendita a Pátria que tal Filho teve! Poderíamos dizer seguindo o poeta.
                                              
De luto estamos nós que não conhecemos Mandela. Não do luto de uma morte, mas do luto de uma vida sem ninguém da sua escala que nos lidere.