ADORAÇÃO DOS REIS
MAGOS
1 E, tendo nascido Jesus, em Belém de Judeia, no tempo do rei
Herodes, eis que uns magos vieram, do oriente, a Jerusalém, 2 Dizendo: Onde
está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no oriente
e viemos a adorá-lo. 3 E o rei Herodes ouvindo isto, perturbou-se, e toda
Jerusalém com ele. 4 E, congregados todos os príncipes dos sacerdotes e os
escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo. 5 E eles lhe
disseram: Em Belém de Judeia; porque assim está escrito pelo profeta: 6 E tu, Belém,
terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá; porque de
ti sairá o Guia que há-de apascentar o meu povo de Israel. 7 Então Herodes,
chamando secretamente os magos, inquiriu exactamente deles, acerca do tempo em
que a estrela lhes aparecera. 8 E, enviando-os a Belém, disse: Ide e perguntai
diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo, para que também
eu vá e o adore. 9 E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela
que tinham visto no oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve
sobre o lugar onde estava o menino. 10 E, vendo eles a estrela, alegraram-se
muito com grande alegria. 11 E, entrando na casa, acharam o menino com Maria,
sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, lhe
ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra. 12 E, sendo por divina revelação
avisados em sonhos, para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para
a sua terra por outro caminho.
Mateus 2, 1-12
Oficina de Vicente Gil (doc. 1498-1525) e Manuel Vicente (doc. 1521-1530)
Pintura: óleo sobre madeira de
carvalho, 1500-1525, Alt 96 x Lg 69
cm
Museu Nacional de Machado de Castro
Proveniência: Mosteiro de Santa Maria de Celas, Coimbra
Autor desconhecido
[Lisboa], (sec. XVIII)
Painel
de azulejos (barro vidrado, majólica), c.1760-70, Alt 197,6 x Lg 293 cm
Museu Nacional do Azulejo
Manuel Gomes de Andrade
(sec. XVIII)
Pintura, óleo
s/tela, 1733-1734, Alt 281 x Lg 186,5,
Museu
de Alberto Sampaio
Grão Vasco
(1475/1480 - 1542) e Francisco Henriques (act. 1500-1518)
Pintura (retábulo):
óleo sobre madeira de carvalho, 1501-1506, Alt 131 x Lg 81 espessura
Museu de Grão Vasco
Proveniência:
Sé de Viseu
Este
grupo de quadros mostra-nos uma das mais interessantes e inovadoras cenas que
Mateus nos apresenta. De facto, este episódio surge apenas neste evangelhos,
sendo os outros três totalmente omissos a seu respeito. Os nomes destes homens
vindos de oriente, o seu número de três, e a intitulação de Reis, vêm de
tradições extra-bíblicas. Aqui, em Mateus, são apenas «uns magos […] do
oriente».
A
sua função neste texto é dupla. Por um lado, ajudam a colocar historicamente a
narrativa, relacionando-a com um monarca, Herodes. Por outro lado, trata-se de
um recurso de escrita, que permite introduzir, logo no início do texto, o
sentido messiânico e de rejeição de que Jesus será alvo. Com estes magos, é-nos
dito que até os pagãos adorariam o Messias judeu, como que afirmando a
universalidade da sua salvação, já não apenas para o Povo Eleito, em detrimento
das autoridades que o rejeitariam.
E
essa prefiguração do que conduzirá Jesus à morte está ainda mais completa, como
podemos perceber com um olhar mais cuidado para este excerto: para além de já
estar criado o quadro em que
Jesus não terá o apoio das autoridades, no confronto e no
questionamento de Herodes temos a afirmação da realeza de Jesus, o que, no
final da sua vida, será o fulcro da acusação que o leva à morte na cruz, onde
se dizia, como que confirmando os medos de Herodes: “Jesus de Nazaré, Rei dos
Judeus”.
Mas
o centro destes quadros reside em dois pólos de sentido, um deles com ecos
especiais na cultura portuguesa. Por um lado, esta cena é a imagem perfeita,
através dos «magos» transformados também em «reis», de que os monarcas prestam
tributo a Jesus. Por outro lado, este trecho bíblico, remetendo o leitor para o
universo do exótico oriental, foi o receptáculo ideal para a representação do
“outro”, a novidade da variedade humana que os Descobrimentos trazem para a
Europa.
O
quadro que aqui temos da oficina de Vicente Gil e Manuel Vicente, centrado na
tradição de figuração dos magos, retratados como reis, lança os dois campos de
problemáticas antes apontados. Por um lado, os ditos magos são, em toda a imagética
a eles aplicada, monarcas, na sua estrita acepção. Por outro lado, o rei negro,
dando-nos a proximidade às conquistas em África, apresenta iconograficamente um
objecto de grande significado: como que personificando o então famoso Preste
João - o rei etíope que ajudaria o reino na afirmação do seu poderio – este Rei
Mago tem nas mãos uma oferenda que em tudo nos faz lembrar a esfera armilar que
com D. Manuel passa a fazer parte da iconografia real.
Na
pintura portuguesa, muito mais que na restante pintura europeia, o rei negro
ganhou um lugar que nunca mais foi posto em causa. No painel
azulejar de setecentos, ele lá está com uma coroa exótica que nos faz lembrar
mais penas que metal. No quadro desse mesmo século, o toucado é retomado como
remate da cabeça, mas a cor da pele mantém-se.
No
quadro de Grão Vasco, pintado cerca de dois anos após o “achamento” do Brasil,
encontramos o mais interessante exemplo da função desta cena bíblica como campo
de experimentação na representação do “outro”. De facto, neste quadro temos, na
figura de um dos Reis Magos, a primeira imagem europeia de um índio
sul-americano, fazendo-nos crer no que pareceria impossível, apenas um ou dois
anos depois da chegada ao Brasil: Vasco Fernandes parece ter visto, de facto,
um índio, pela forma pormenorizada como o pinta. São seus atributos: um toucado
de penas, inúmeros colares de contas coloridas, manilhas de ouro nos pulsos e
nos tornozelos, brincos de coral branco e, até, uma flecha tupinambá com o seu
longo cabo.
Rematando
o comentário a este excepcional episódio, dos mais reproduzidos na pintura
portuguesa, retomemos a questão da ideologia régia. Vejamos que dos três Reis
Magos, um surge sempre em primeiro plano, algumas vezes a tocar ou muito mais
próximo de Jesus. Quem é ele? Ora, sem nome que se lhe possa dar, podemos
afirmar que esse Rei Mago, sempre mais próximo de Jesus, é também aquele que
sempre é representado de forma mais europeizada. Em todos estes quadros, sem
excepção, esse monarca é sempre vestido com parte significativa da roupagem que
teria exactamente o rei português na época. Veja-se o caso do quadro
contemporâneo de D. Manuel, pintado por Grão Vasco, ou, ainda mais
significativo, o do século XVIII, pintado na época de D. João V, que aqui se
apresenta, com manto púrpura, ajoelhado na típica posição de vassalagem, como
que a prefigurar o título de «Fidelíssimo», que viria a receber da Cúria Papal
uma dezena de anos depois.
Retirado do meu livro A Palavra pela Imagem, edição dos CTT.
Aos CTT e à equipa da Filatelia, o meu reconhecido agradecimento por ter podido levar ao prelo um livro com tamanha qualidade editoria.
Feliz Natal!
ResponderEliminarObrigada por esta partilha.
Um Ano Novo cheio de projetos.
Feliz ano novo meu caro.
ResponderEliminarPessoalmente sou mais fã da teoria de que esses sábios (que nem sabemos quantos eram) aguardavam o santo Saoshyant que traria uma nova ordem ao mundo. Quem sabe não foi isso que eles encontraram? Uma nova ordem e o mitraísmo e o cristianismo quase se fundiram num só. O primeiro exemplo paupável de unidade na diversidade que o mundo religoso terá visto?
Um grande abraço