ADORAÇÃO DOS
PASTORES
8 Ora havia, naquela mesma comarca, pastores que estavam no
campo, e guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho. 9 E eis que o
anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de resplandor, e
tiveram grande temor. 10 E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos
trago novas de grande alegria, que será para todo o povo: 11 Pois, na cidade de
David, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. 12 E isto vos será
por sinal: Achareis o menino envolto em panos, e deitado numa manjedoura. 13 E,
no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais,
louvando a Deus, e dizendo: 14 Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa
vontade para com os homens. 15 E aconteceu que, ausentando-se deles os anjos
para o céu, disseram os pastores uns aos outros: Vamos, pois, até Belém, e
vejamos isso que aconteceu, e que o Senhor nos fez saber. 16 E foram
apressadamente, e acharam Maria, e José, e o menino deitado na manjedoura. 17
E, vendo-o, divulgaram a palavra acerca do menino que lhes fora dita; 18 E
todos os que a ouviram se maravilharam do que os pastores lhes diziam. 19 Mas
Maria guardava todas estas coisas, conferindo-as em seu coração. 20 E voltaram
os pastores, glorificando e louvando a Deus, por tudo o que tinham ouvido e
visto, como lhes havia sido dito.
Lucas 2, 8-20
Marçal de Matos [atribuída], sec. XVI
Painel de azulejos (barro vidrado,
majólica), c.1580, Alt 465 x Lg 500 cm
Museu Nacional do
Azulejo
Proveniência: antiga Igreja de Santo
André, Capela de Nossa Senhora da Vida, Lisboa
Josefa D’Óbidos (1630-1684)
Pintura: óleo sobre tela, 1669. Alt 150
x Lg 164 cm
Museu Nacional de Arte Antiga
Proveniência: Convento arrábido de
Santa Maria Madalena (Alcobaça)
Mestre de 1515 (Jorge Afonso?), (sec.
XVI)
Pintura (óleo sobre madeira de
carvalho): retábulo da Igreja da Madre de Deus, c. 1515, Alt 160,5 x Lg 124,5 cm
Museu Nacional de Arte Antiga
Proveniência: Igreja da Madre de Deus,
Lisboa
A
chamada Adoração dos Pastores é um marco na construção da imagem do Cristo
enquanto menino. Se Mateus coloca uns magos de inspiração babilónia a adorar
Jesus, Lucas prefere, numa lógica mais pueril, centrar-se na figura dos
pastores.
No
imaginário colectivo, esta cena ganhou destaque e um lugar de carinho que
poucas outras adquiriram no quadro largo da vida de Jesus. Se há peças
obrigatórias na tradição do presépio, elas são os pastorinhos que tanto cativam
a atenção das crianças na época natalícia.
Quem
são estes pastores, que em tantas representações surgem a ofertar ao menino
“Messias Senhor” o que de melhor têm: os produtos da terra, do seu gado, e do
seu trabalho? Nada há de acaso nesta descrição bíblica. Em primeiro lugar,
nunca nada há de acaso nos textos de Lucas. De facto, este possível discípulo
de Paulo, médico de profissão, era um inquiridor nato que declara os primeiros
versículos deste Evangelho tudo ter indagado para produzir um texto, diríamos
hoje, sustentado e rigoroso.
Os
pastores são induzidos para a acção. Os anjos aparecem-lhes, informam, e
prescrevem a visita. Porquê, então, os pastores, com tantos outros grupos
possíveis para colocar a adorar Jesus? É que os pastores são plenos de
significados importantes para o nascente cristianismo. Se pensarmos que o texto
descreve uma cena em ambiente judaico, então os pastores são os que se afastam
da cidade, que trabalham com gado impuro, são a imagem dos mais pequenos e
frágeis a quem Jesus se vem apresentar.
Mas
o sentido do texto é mais rico: tendo em conta que o público-alvo deste texto
de Lucas era, assumidamente, o grupo dos recém-cristãos gregos, então ser
pastor tem outros ecos, não tão negativos mas muito mais fortes em termos
religiosos. A imagem do pastor remete para a espiritualidade, para a
purificação. Por exemplo, Hesíodo, o pai da poesia grega, era pastor. Estamos,
claramente, no caminho da imagem do Bom Pastor, uma das imagens mais ricas em
termos teológicos e espirituais.
Perante
público-alvo tão específico neste texto de Lucas, já com algum conhecimento do
cristianismo e culturalmente helenizados, é de notar que é neste texto que é
usada a caracterização de Jesus como o «Messias Senhor», uma forma de afirmar,
inquestionavelmente, a realeza de Jesus como messiânica. Se no episódio dos
chamados Reis Magos se coloca a imagem da realeza a adorar o menino Jesus, aqui
são colocados os mais simples na mesma função. De ambos Jesus recebe tributo.
E
é também de tributo que temos de falar quando olhamos para este episódio,
profusamente pintado na arte portuguesa. De facto, e apesar de nada o texto
bíblico dizer sobre as oferendas dadas à Sagrada Família, nenhum dos pintores
optou por seguir esse desprendimento do texto. Efectivamente, e como que
reproduzindo a atitude que se esperava perante as instituições da Igreja, os
pastores, quais camponeses dos séculos XVI ou XVII, oferecem ovos e animais da
sua produção.
A
cesta de ovos, que nos faz lembrar tão bem a riqueza dos doces conventuais,
surge em grande plano no grupo azulejar que apresentamos. Trata-se de uma
obra-prima da produção nacional de quinhentos, e estava integrado numa
figuração de retábulo de marcenaria lavrada, na capela de N. Senhora da Vida.
Significativamente, ladeando esta representação central, estavam S. João
Batista e, com toda a naturalidade, o próprio evangelista que retrata esta
cena, Lucas.
No
quadro de Josefa de Óbidos, um século mais tardio, os cestos são já em número de
dois, sendo ainda oferecido um cabrito. Estas oferendas ganham, nesta obra, um
grande cuidado por parte de uma pintora que teve nas naturezas mortas um dos
seus campos mais profícuos de produção.
Regressando
ao século XVI, no quadro do Mestre de 1515, temos novamente uma figuração que
se afasta do actual estereótipo da gruta, preferindo-se a ruína, ao mesmo tempo
que temos um significativo e pormenorizado vislumbre sobre os instrumentos
musicais de início de quinhentos. Também neste caso, as ofertas da lavoura,
mais propriamente, os ovos, estão presentes, como que lembrando aos crentes,
quase todos eles agricultores, que deveriam repetir esse gesto supostamente
iniciado mal nascera o Salvador.
Retirado do meu livro A Palavra pela Imagem, edição dos CTT.
Aos CTT e à equipa da Filatelia, o meu reconhecido agradecimento por ter podido levar ao prelo um livro com tamanha qualidade editoria.
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