segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O caminho até ao dogma da Imaculada Conceição, ou o que se celebra hoje, 8 de dezembro?

 



As heranças em Maria, mãe de Jesus, são imensas e resultaram num complexo de religiosidade e piedade onde quase tudo foi sendo colocado, numa definição construída na oposição a Eva e a Maria Madalena.

Com escassas referencias nos Evangelhos (surge em dez episódios, e usa da palavra apenas sete), Maria foi sendo cumulada de características de verdadeira divindade, numa evolução doutrinária que colocou Maria cada vez mais como o modelo inacessível da mulher.

Aos dias de hoje, são vários os dogmas sobre a sua divindade, construídos ao longo de mais de 1500 anos, portanto, num aprofundamento teológico que não era natural a início.

O seu cursus honorum é o seguinte:

  • Dogma da «Maternidade divina» (431);
  • Dogma da  «Virgindade perpétua» (553);
  • Dogma da «Imaculada Conceição» (1854);
  • Dogma da «Assunção» (1950).

Os últimos dois passos são dados já muito perto de nós, numa construção já profundamente rebuscada e cimentada na tradição. 

O que se festeja hoje é exemplo perfeito na forma como se cimentou e oficializou. Vejamos melhor a forma como esta data se afirmou no quadro das crenças católicas, especialmente as chamadas aparições de Lourdes, a peça central.

O Santuário da Imaculada Conceição, em Lourdes, é um dos maiores locais de romagem católica.  Localizado nos Pirenéus, o santuário recebe anualmente largos milhões de visitantes e peregrinos.

Religiosamente, este fenómeno de devoção leva-nos até ao século XIX, a 11 de Fevereiro do ano de 1858, quando a Virgem Maria terá aparecido pela primeira vez a Bernadette Soubirous, na gruta Massabielle, na altura com apenas 14 anos de idade – numa idade ainda “inocente”, o que é comum neste quadro de aparições (veja-se Fátima). 

As aparições terão sido em número de 18, a última a 16 de Julho do mesmo ano. Apesar de proibida de tornar à gruta, a jovem foi encaminhada até à nascente de águas milagrosas onde as aparições se tinham dado. A primeira aparição deu-se a 11 de Fevereiro de 1858 e encaixou perfeitamente na estratégia de afirmação teológica e devocional do culto à Imaculada Conceição. 

De facto, o dogma que afirma que Maria nunca conheceu o pecado é de 8 de Dezembro de 1854, proclamado pelo Papa Pio IX. As aparições de Lourdes são de escassos quatro anos posteriores e nelas é a própria Virgem Maria a afirmar-se como «Imaculada». 

Como reza a história oficial do santuário, na décima sexta aparição, a Senhora disse quem era: “Que soy era Immaculada Councepciou”. A própria legitimava o seu dogma. As curas milagrosas surgiram logo como forma de comprovar as aparições e de fomentar a fé dos peregrinos. 

Desde muito cedo, 1860, que a Igreja Católica reconheceu esses milagres. Ao todo, as aparições foram 18, e parte delas em dias seguidos ou muito próximos, ao contrário do que sucedeu em Fátima (11/2, 14/2, 18/2, 19/2, 20/2, 21/2, 23/2, 24/2, 25/2, 27/2, 28/2, 1/3, 2/3, 3/3, 4/3, 25/3, 7/4 e 16/7). 

Logo nas primeiras aparições a vidente foi acompanhada por peregrinos, devotos ou curiosos do momento, que rapidamente eram milhares – a 28 de Fevereiro já ultrapassariam o milhar.  Os presentes apenas viam Bernadette em êxtase e a cumprir alguns gestos que se repetiam em todas as aparições: beber da água da fonte, comer algumas plantas que ai nasciam, prostrar-se em sinal de penitência pelos pecadores do mundo. 

Terá sido a própria Imaculada Conceição que pediu que ali se construísse uma capela em sua homenagem.  

Aos 22 anos, em 1866, entrava para o noviciado das Irmãs da Caridade. A 30 de Outubro de 1867 pronunciava os seus votos. Bernadette Soubirous faleceu com a idade de 35 anos (16 de Abril de 1879), murmurando no leito de morte: “Santa Maria, Mãe de Deus, orai por mim, pobre pecadora”. 

A canonização de Bernadette Soubirous teve o sue primeiro passo em 1907 com a abertura do processo. Entre 1909 e 1925 o seu corpo foi exumado três vezes e em todas estava incorrupto. Pio XI, a 14 de Junho de 1925, declarou a sua beatificação. A 8 de Dezembro de 1933, o mesmo Sumo Pontífice, canonizou Bernadette. 

A questão da natureza e da experiência de Maria perante o pecado é um dos mais ricos e mais controversos campos teológicos da cristandade. Parte significativa do cisma entre as igrejas Ortodoxa e Católica advém de entendimentos diversos dessa questão. O catolicismo evoluiu o seu pensamento mariológico no sentido de definir a Virgem Maria como nunca conhecedora de pecado algum. Ora, e em palavras muito simples, se Maria nunca conheceu pecado algum, como pode ela ser salva pelo seu Filho? 

Este fenómeno religioso também se cruza com Portugal, sendo a Imaculada Conceição a Padroeira de Portugal. Em meados do século XVII, após a Restauração, o monarca português, D. João IV, eleva a Imaculada Conceição a Padroeira do Reino, entregando-lhe a sua coroa. D. João IV prometeu pagar ao santuário de Vila Viçosa a quantia de 50 cruzados de ouro por ano. 

Assim, Vila Viçosa era o primeiro santuário com esta invocação em toda a Península Ibérica, afirmando a diferença face a Espanha, a potência de quem se queria a independência. Em Maio de 1671, Clemente X confirmava esta escolha do monarca nacional.


domingo, 7 de dezembro de 2025

Isto (também) é o Bangladesh. A lição da Igreja do Jubileu, em Setúbal


Quando o mundo à nossa volta parece apenas se direcionar para a radicalização mais imoral, tornando normal e aceitáveis frases como "Isto não é o Bangladesh", esse mesmo mundo coloca à nossa frente a resposta positiva para que compreendamos que há pessoas e instituições, por vezes quase escondidos, que sustentam os valores comuns que unem os "Homens de Boa Vontade".  

Esta manhã tive o imenso prazer de estar na cerimónia de comemoração dos 40 anos de ordenação pastoral do José Brissos-Lino, meu colega na Universidade Lusófona, durante largos anos, Diretor do Mestrado em Ciência das Religiões e, felizmente, meu grande amigo.  

Convidou-me para proferir umas breves palavras nessa cerimónia e, com toda honra, respondi positivamente ao convite. À hora combinada cheguei à Igreja do Jubileu, em Setúbal, uma igreja com presença importante na cidade, fundada em 1947, onde o José Brissos-Lino tem sido o responsável pastoral.  

Recebeu-me calorosamente e, depois de me oferecer um café, pois somos dois inveterados nessa bebida sem a qual nenhum dia ousa ter início, levou-me a dar uma breve volta pelas instalações, aliás, excelentes.  

Sem lugar de destaque, no corredor que dá acesso á escadaria que nos conduz ao piso onde se situa o salão de culto, duas fiadas de fotografias chamaram a minha atenção. Alinhadas, cada moldura tinha uma fotografia de um menino ou menina, com o seu nome e uma breve descrição. Crianças apoiadas por uma "missão" desta igreja, em que os membros enviam regularmente meios financeiros para suprir as mais as suas básicas necessidades.  

A Igreja do Jubileu patrocina financeiramente 35 das 70 crianças de um orfanato, dirigido por Rupali Sarkar e marido e se localiza na região de Khulna, Bangladesh. É um trabalho que leva já cinco anos que tornaram a vida destas crianças menos pesadas.

No Bangladesh, apesar da Constituição o não permitir, entre a população hindu ainda se vive debaixo do criminoso regime de castas, levando parte da população, das castas mais baixas, a uma vida profundamente miserável. Estas crianças são de famílias marcadas, desde há gerações, por essa visão do Ser Humano, que retira a parte deles a mínima dignidade.  

Cruzando oceanos e continentes, mas cruzando também preconceitos, esta igreja mostra-nos que nem toda a realidade religiosa cristã evangélica alinha com as posturas radicais e tantas vezes, mais que racistas, pouco cristãs.  

A Igreja Jubileu está de parabéns por este gesto que merece ser conhecido, divulgado, para se saber que sim, também aqui é Bangladesh, exatamente como J. F. Kennedy afirmou há já largos anos que também ele era berlinense.   

Seremos sempre aqueles que nos façam humanos.  

Obrigado! 



segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Turquia e Líbano. Que razões para a visita do Papa?

A poucos dias desta que será a primeira visita ao estrangeiro de Leão XIV, importa um olhar que procure compreender as razões para esta visita à Turquia e ao Líbano.

A mais óbvia, e já em si muito importante, encontra-se no aniversário do Concílio de Niceia (no ano de 325, convocado pelo Imperador Constantino), o marco fundamental na criação de uma ortodoxia no cristianismo, até essa data tão marcado por inúmeros movimentos com grandes clivagens teológicas entre si.

Mas Niceia não é apenas um ponto de partida do que podemos designar por Igreja Católica. Niceia é o denominador comum entre o Catolicismo, as Igrejas Ortodoxas e as Protestantes. Ir a Niceia é um ato ecuménico de afirmação do básico e essencial. Esta viagem é a procura de um encontro com o antes de todas as divisões.

É claro que cabem, e com razão, todas as reflexões e interrogações sobre o movimento ecuménico lançado pela Igreja Católica após o Concílio Vaticano II, mas estamos, sem dúvida, perante um gesto de busca de pontes como, aliás, o próprio logotipo da visita aponta.

As mesmas razões, agora toma das de forma diferente, são centrais na visita ao Líbano, possivelmente o país mais multirreligioso da região. Além de diferentes e várias tradições religiosas, o cristianismo encontra-se presente milenarmente no Líbano, com importantes comunidades (Maronitas, entre outros).

Hoje, num quadro em que esta religião é perseguida em tantas geografias, com destaque para o Médio Oriente, esta visita é reforçada com essa mensagem que, ao diálogo, soma a tolerância que marcou tantas vezes a região, mas agora se acha fragilizada.




quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Frase do dia: "Israel should Never Exist"

RADICALISMOS


Quando os caminhos se fazem no mundo dos radicalismos, apenas podemos esperar colher tempestades de ódio.
Esta imagem foi hoje captada na emissão da RTP3, numa reportagem sobre a manifestação que está a ter lugar junto à Embaixada de Israel em Lisboa, a propósito da prisão de cidadãos que davam corpo à flotilha humanitária que pretendia levar ajuda humanitária a Gaza.
A luta, no Ocidente Europeu, pelos direitos do Povo Palestiniano ultrapassou em muito esse mesmo povo:
- Por um lado, tornou-se imagem e material para a luta de algumas esquerdas contra o que ainda representam como um imperialismo americano e europeu;
- Por outro lado, ultrapassaram-se todos os limites racionais da contestação e luta, defendendo, de facto, os princípios radicais dos que pretendem arrasar o Estado de Israel.


E este último ponto é comprovado, entre muitas outras formas e momentos, pelo cartaz que vemos nesta imagem. E, quando chegamos a este ponto, já deixámos para trás muitos dos mais importantes princípios que definem a nossa civilização.
Defender o fim do Estado de Israel é, ao mesmo tempo, defender o terrorismo que o tem apregoado. E é, também, defender regimes onde muitos dos que na Europa lutam pela Palestina, nunca teriam lugar.
Isto é, muitas das lutas que a esquerda travou em defesa de Direitos Fundamentais, seriam totalmente negados nesses regimes e os seus membros punidos brutalmente.
Acho que tudo está virado ao contrário e vemos quem deveria ser a vanguarda a ir ao encontro da barbárie.

domingo, 21 de setembro de 2025

Rosh Hashanah - Início do Ano Novo judaico e a memória da Humanidade nascente

1 de Tishrei (ao pôr-do-sol de 22 de setembro)


O início do Ano Novo na tradição judaica encontra-se profundamente ligado à ideia de renovação. Normalmente, os calendários encontram muitas vezes ciclicidades ligadas ao mundo agrário, aos ritmos da natureza, às ideias de renascimento e de morte, seguindo as estações do ano. 

No caso judaico tal pode acontecer, mas o sentido profundo teológico encontra-se na própria ideia de Criação do Mundo, mais propriamente, da Humanidade. De facto, as tradições rabínicas colocam a abertura do ano nesta data porque é aí que, interpretando os Textos Sagrados, a Torah, se definiu ter sido criada a Humanidade. 
Assim, este início de ano é um momento absoluto e único que, não apenas marca e festeja essa data primordial, como liga toda a comunidade ao que de essencial ela representa. No livro de Levítico 23: 24, na referida Torah, fala-se no dia Dia da Aclamação. O sentido é o de ligação ao momento primeiro da Criação e, obviamente, ao próprio Criador.
Assim, este dia é, verdadeiramente, o momento de reflexão e de balanço de todo o ano anterior. No primeiro dia do ano dá-se início a todo um período de meditação em torno das falhas marcadas, muitas vezes, pelas imagens das desobediências e dos erros das personagens do Génesis bíblico, seja Adão e Eva, ou mesmo Caim.
Esta ideia mais não é que um recentrar a ideia de Criação na de Justiça, a mais interessante dimensão ecológica na forma de ver o momento primeiro de onde todos partem. Isto é, só há integridade da Criação, no sentido do mandato dado à Humanidade, se ela se espraiar pelos tempos através da procura da Justiça.
Passagem de um ano a outro, para algumas tradições, este dia é o Dia de Julgamento, o dia em que o Criador faz o balanço entre os justos e os ímpios. Na espiritualidade de cada um, este primeiro dia do ano abre dez dias de reflexão que terminam no Dia da Expiação, o Yom Kippur.

O Ano Novo judaico, mais que um evento de celebração, com os seus rituais e orações próprias, é um tempo de meditação, de balanço e de avaliação.

sábado, 23 de agosto de 2025

Nuno Baltazar e a Sra. de Fátima: a matéria do religioso recriada entre o kitsch e camp

Parte do património mais importante que temos, não é construído, nem se encontra em catálogos de arquitetura, pintura ou escultura. São do campo das ideias que constroem as identidades, são do universo do que não se salvaguarda colocado numa redoma. Antes pelo contrário, aquilo a que podemos chamar e Património Cultural Imaterial encontra-se no universo popular, na junção entre o crer e o ser, sem grandes monumentalidades e muitos sentires.

Na visita ao MUDE - Museu do Design, a exposição "PORTUGAL POP. A MODA EM PORTUGUÊS. 1970-2020" dá-nos um rico manancial de exemplos da recriação de símbolos e de outros elementos tradicionalmente identificados como importantes na imagética nacional.

Contudo, entre tantas peças de interesse, uma tríade de Nuno Baltazar ganha um lugar de grande destaque, pela forma arrojada e, ao mesmo tempo, simples, de recriar elementos religiosos fora do seu contexto, dando-lhe uma nova dimensão estética, num magnífico cruzamento entre o kitsch e camp.

Retiradas da coleção “Transverse”, do outono/inverno de 2024, estas peças são, nas palavras do Press Release que apresenta a coleção, “um exercício para a criação de diálogos visuais anacrónicos, que resulta de o cruzamento de diferentes personagens […] uma dialética subversiva em que desenraíza conteúdos religiosos e os contextualiza em novos corpos performativos, numa narrativa que cruza a cultura popular com a queer.” (https://www.nunobaltazar.com/collections/38-or-transverse-aw2324/)

Estas peças são um salto de liberdade criativa, o resultado de uma capacidade ímpar de pegar no tradicional e, retirando-lhe o tapete, o colocar num cruzamento entre aquilo que nos espanta e, imediatamente, admiramos.










terça-feira, 19 de agosto de 2025

Os passos da Azinheira Grande sobre a muralha romana de Idanha-a-Velha

 


Com os Ents, Tolkien introduz na cultura popular do ocidente a figura das árvores que falam e andam. É, sem dúvida, uma das figuras mais ricas d’"O Senhor dos Anéis". Árvores protetoras das florestas da Terra-média, são apresentadas como seres antigos, repositório de uma sabedoria que hoje nos confronta. Com uma profunda ligação à natureza, a forma como se movem e falam, com uma lentidão que, ao primeiro olhar advém apenas da sua colossalidade, os Ents são a imagem do tempo que não se esvai no momento, da ponderação e da serenidade, típica de quem consegue ver bem de cima, nunca tomando o todo por parte alguma.

Esta imagem criada por Tolkien no final da década de trinta do século XX, facilmente encontrou material onde se encrustar com muito significado. Vindos do século XIX onde se valorizaram os jardins, na herança do XVIII onde se multiplicaram os jardins botânicos, com toda uma profusão de exótico, as árvores monumentais e antigas ganharam um lugar de destaque na própria ideia de património, sendo hoje classificados e protegidos os espécimes mais antigos ou mais majestosos.

Parecendo galgar o suporte a que se agarra, dando a sensação de estar num desequilíbrio que a fará dar mais um passo, a chamada Azinheira Grande, em Idanha-a-Velha, é uma imensa e centenar árvore que facilmente alimenta a nossa imaginação, depois de um primeiro longo momento de espanto.  

Alcantilada no topo da muralha romana, com um pendor que a coloca numa posição ilusoriamente dinâmica, esta espantosa azinheira de gigantesco porte encontra-se agarrada ao forte núcleo argamassado da muralha, parecendo como que ingerir alguns dos monólitos no seio das suas fortes raízes.

Toda esta árvore é um imenso conjunto de metáforas, no cruzamento entre a cultura e a natureza, ou entre a estaticidade do construído e a dinâmica do natural. Quem domina quem? Quem supera e vence? Quem se lança para um futuro mais eterno?

Naturalmente, recordo a peça de Alejandro Casona, “As Árvores Morrem de pé”, popularizada em Portugal através da interpretação de Palmira Bastos em 1966, em gravação feita pela RTP.

Esta, felizmente, aparenta estar longe de morrer, mas mostra-nos como é o viver. Mesmo que seja entre largos silhares de uma construção já com mais de milénio e meio, uma “ciclópica” muralha romana. Desequilibrada, sem terra fértil onde colocar as suas raízes, lá está ela a dizer a cada um de nós que uma simples semente, uma vez lançada, pode germinar e dar o maior dos frutos, mesmo em ambiente hostil.