sábado, 1 de março de 2014

Festas de Loucos e Carnavais, com Maquiavel

Recuperando um poema de Maquiavel, ou as Festas de Loucos e Carnavais

Pelo início da década de noventa do século passado, veio parar às minhas mãos a edição portuguesa do livro Festas de Loucos e Carnavais de Jacques Heers (Lisboa, D. Quixote, 1987). Para mim este livro foi um verdadeiro “balde de água fria”. Com a leitura escorreita deste texto, embrenhei-me numa obra onde não encontrava um trabalho feito com base nas típicas definições de historiografia.
Festas de Loucos e Carnavais tanto era um livro sobre História das Mentalidades, sobre aspectos de Cultura e de Sociedade, como de Ideias ou, para meu espanto, era também um excepcional livro de História das Religiões.
Com esta obra de Heers, percebi que uma visão compartimentada da História pode ser mais confortável, pode ajudar-nos a criar e a definir melhor as ideias e os conceitos, mas faz-nos perder parte do essencial. É que, tal como o Carnaval, toda e qualquer actividade humana não se esgota numa das vertentes com que catalogámos a nossa vida nos dois últimos séculos. Não há social sem religioso, não há ideias sem cultura, tal como não há mentalidades sem política e normas que nos organizem.
E nesta transversalidade que é a imagem da complexidade que Edgar Morin tão bem trabalha, não deixo de frequentemente me lembrar do meu espanto quando há uns anos, cantava eu num coro em Lisboa, o saudoso Coral Paradoxal, me colocaram nas mãos uma pauta que indicava que o poema era de…. Niccoló Machiavelli! Mas mais, o poema era sobre o Carnaval!
De facto, com música de Alessandro Cappinus, lá lançámos mãos á obra que fora escrita para o carnaval veneziano de 1502. De' diavoli iscacciati di cielo era a obra que me apaixonaria e me faria recriar uma outra figura por trás do autor d’O Princípe.
E como era, e é, bastante actual, este poema ainda num dialecto arcaico do que hoje chamamos italiano. O título indica-nos que nestes dias os demónios foram empurrados, soltos, do céu. Vieram até nós, que já não somos “beati”.
O caos da quadra era vivido mas, ao mesmo tempo, cantado como algo negativo. Era negativo, mas vivia-se. A Quaresma que no dia seguinte se abria implicava já muita mortificação, jejuns, confissões e medos. Afinal, quando se começa a festejar fortemente o Carnaval deve ter sido pela época em que o Purgatório, os Anos Santos e toda a restante panóplia de espartilhos se consolidaram no mundo cristão, isto é, pelos séculos XI a XIII.
Nesta quadra, aqui ficam dois poemas de Maquiavel, ambos feitos para o Carnaval.

De' diavoli iscacciati di cielo

Già fummo, or non siam più,
spirti beati; per la superbia nostra
siàno stati dal ciel tutti scacciati;
E in questa città vostra
abbiàn preso il governo,
perché qui si dimostra
confusion, dolor più che in inferno.

E fame e guerra e sangue e diaccio e foco,
sopra ciascun mortale,
abbiàn messo nel mondo a poco a poco;
E ’n questo carnovale
vegnàno a star con voi,
perché di ciascun male
fatti siàno e saren principio noi.

Plutone è questo, e Proserpina è quella
ch’a lato se gli posa;
Donna sopra ogni donna al mondo bella.
Amor vince ogni cosa;
Però vinse costui,
che mai non si riposa,
perch’ognun faccia quel ch’ha fatto lui.

Ogni contento e scontento d’amore
da noi è generato,
e ’l pianto e ’l riso e ’l diletto e ’l dolore,
chi fussi innamorato,
segua il nostro volere
e sarà contentato;
Perché d’ogni mal far pigliàn piacere.



Degli spiriti beati

Spirti beati siàno,
che da’ celesti scanni
siàn qui venuti a dimostrarci in terra,
poscia che noi veggiàno
il mondo in tanti affanni
e per lieve cagion sì crudel guerra;
e mostrar a chi erra,
sì come al Signor nostro al tutto piace
che si ponghin giù l’arme e stieno in pace.

L’empio e crudel martoro
de’ miseri mortali,
il lungo strazio e ’nrimediabil danno,
il pianto di costoro
per li infiniti mali
che giorno e notte lamentar gli fanno,
con singulti e affanno,
con alte voci e dolorose strida,
ciascun per sé merzè domanda e grida.

Questo a Dio non è grato,
né puote essere ancora
a chiunche tien d’umanitate un segno;
per questo ci ha mandato,
che vi dimostriam ora
quanto sie l’ira sua giusta e lo sdegno:
poiché vede il suo regno
mancar a poco a poco, e la sua gregge,
se pe ’l nuovo pastor non si corregge.

Tant’è grande la sete
di guastar quel paese
ch’a tutto il mondo diè le leggi in pria,
che voi non v’accorgete
che le vostre contese
a li nimici vostri aprin la via.
Il signor di Turchia
aguzza l’armi, e tutto par ch’avvampi
per inundar i vostri dolci campi.

Dunque, alzate le mani
contr’al crudel nemico,
soccorrendo a le vostre gente afflitte;
deponete, cristiani,
questo vostro odio antico,
e contro a lui voltate l’armi invitte;
altrimenti, interditte
le forze usate vi saran dal cielo,
sendo in voi spento di pietate il zelo.

Dipàrtasi il timore,
nimicizie e rancori,
avarizia, superbia e crudeltade;
risurga in voi l’amore
de’ giusti e veri onori;
e torni il mondo a quella prima etade;
così vi fien le strade
del ciel aperte a la beata gente,
né saran di virtù le fiamme spente.



6 comentários:

  1. Querido amigo Paulo, fico realmente impressionada com a vitalidade do pensamento e da pesquisa presentes no departamento de Ciências da Religião da Universidade Lusófona. Digo isso extensivo à sua pessoa e à qualidade acadêmica que poucas vezes vi nessa trajetória de professora e jornalista. Parabéns. Devo ir a Portugal em junho, quando espero vê-lo e colocar a conversa em dia. Forte abraço de além mar!

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  2. Muito interessante! Obrigada por compartilhar.

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  3. Apreciei sobremaneira este texto.
    grata pela partilha.

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  4. Por favor, se possível fazer uma tradução para o português.
    att
    Ronan

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  5. Partilho da mesma opinião da Vera.
    Parabéns pela qualidade :)

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