Mais uma vez
regressei a Saramago e a algumas das suas páginas. Cada vez mais é uma leitura
que se supera em degraus por vezes inesperados, como no caso do poema que
transcrevo no final deste texto.
É verdade que
faleceu aquele que é um dos maiores vultos da cultura da segunda metade do
século XX. Para memória futura, algumas polémicas sobre religião irão perdurar.
O autor de Memorial do Convento, ateu confesso, revolucionou o olhar crítico
sobre a religião e, na tradição de Garrett, Herculano e Eça, violentou
fortemente todos os que gostariam que a religião passasse ao lado do olhar e da
pena acutilante de quem se inquieta e quer respostas.
E foi pelo campo
das respostas que com Saramago tudo se realizou. Simplesmente, Saramago fez o
essencial e tão simples: se há respostas a serem procuradas, então deve-se
começar com questões. E no questionar é que a religião se fere de morte.
Os questionamentos
de Saramago foram ao âmago do sentir religioso. E nesse âmago encontra-se o
que, para quem tem um olhar mais exigente, é do mais esquecido em religião: o
Homem, os indivíduos na sua plena liberdade de opção e nos seus dramas
pessoais, tantas vezes muito mais prementes que as formulações teológicas e os
ditames organizadores das estruturas sociais.
Foi assim que lemos
o seu In Nomine Dei, com uma profunda crítica ao tempo de guerra religiosa que
invadiu a Europa Central depois da eclosão do Protestantismo. Foi muito mais,
ainda, o que lemos no seu consagrado Memorial do Convento. Nesse magnífico texto,
encontramos, numa envolvência de crítica constante, de inquietação dolorosa, a
parceria entre a estrutura religiosa e a pessoa no que de mais individual ela
tem. Parceria essa reveladora de feridas insanáveis no Portugal de setecentos,
de cortes profundos em que a Inquisição e a vida de corte são espelhos de uma
sociedade desencontrada.
No Evangelho
segundo Jesus Cristo, temos a máxima humanização possível, que começa com a
ideia de fuga da família de Jesus. Ao fugir, deixam para trás, sem aviso que
possibilite semelhante sorte, todas as crianças que, assim, são sacrificadas
moralmente por José. Que peso é este sobre um homem, um homónimo do escritos,
que leva nos ombros, para Salvação da Humanidade, a culpa da morte de tantas
crianças?
Há menos tempo, com
Caim, Saramago lançava-se na complexa arquitectura de (d)escrever o Homem na
busca do confronto com Deus. Caim, o homem pleno de Homem, procurou até ao
ponto da aniquilação da Humanidade, o choque com o Criador. A Criatura anulou a
Criação do Criador.
O seu percurso
estava preenchido e definido. A sua "teologia" estava montada e
explicada.
Como normalmente se
diz, morreu em paz. Na sua Paz. Uma paz que é inquieta. Inquietude.
A nós, fica a
leitura, para que aprendamos a conhecer o que é ser inquieto.
Que se leia o
excepcional "Aprendamos o rito", de José Saramago
Põe na mesa a
toalha adamascada,
Traz as rosas mais
frescas do jardim,
Deita o vinho no
copo, corta o pão,
Com a faca de prata
e de marfim.
Alguém se veio
sentar à tua mesa,
Alguém a quem não
vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no
regaço, não perguntes:
Nas perguntas que
fazes é que mentes.
Prova depois o
vinho, come o pão,
Rasga a palma da
mão no caule agudo,
Leva as rosas à
fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual
e sabes tudo.
Gostei da poesia.
ResponderEliminarQuanto à crítica de Saramago à religião nada de novo abordou que não fosse já abordado an nível literario e científico a nível internacional. Quanto ao mito de Caim, fez a sua legítima interpretação sem ter em conta a discussão teológica do mito a nível sociológico e antropológico.
Quando perguntei a Saramago quais as principais influências literárias que o levaram ao ateísmo, respondeu-me que foram os autores franceses, especialmente da época do Iluminismo, como Holbach, Voltaire e Diderot. A resposta é reveladora não só por aquilo que diz (a referência a Holbach e a Diderot - duas das mais importantes e injustamente esquecidas referências do Iluminismo ateu), mas também, por aquilo que não disse. Não disse Nietzsche. Não disse Sartre. Não disse Freud. E não dizer tudo isso, é já dizer muito.
ResponderEliminarMesmo dizendo-se ateu, sinto que Saramago nos conduz a uma profunda busca de transcendência. Se neste mundo "tudo o que é sólido se dissolve no ar" (Marx), reler o Ensaio sobre a Cegueira ou a Jangada de Pedra, leva a recriar os cenários da (nossa) história e a redescobrir os sentidos deste caminho colectivo, com humana inquietude na mira da Luz, da Justiça e da Paz. E o que haverá de + religioso e de + humano nesse caminho?
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