terça-feira, 8 de julho de 2014

A Religião de Saramago

Mais uma vez regressei a Saramago e a algumas das suas páginas. Cada vez mais é uma leitura que se supera em degraus por vezes inesperados, como no caso do poema que transcrevo no final deste texto. 

É verdade que faleceu aquele que é um dos maiores vultos da cultura da segunda metade do século XX. Para memória futura, algumas polémicas sobre religião irão perdurar. O autor de Memorial do Convento, ateu confesso, revolucionou o olhar crítico sobre a religião e, na tradição de Garrett, Herculano e Eça, violentou fortemente todos os que gostariam que a religião passasse ao lado do olhar e da pena acutilante de quem se inquieta e quer respostas.

E foi pelo campo das respostas que com Saramago tudo se realizou. Simplesmente, Saramago fez o essencial e tão simples: se há respostas a serem procuradas, então deve-se começar com questões. E no questionar é que a religião se fere de morte.

Os questionamentos de Saramago foram ao âmago do sentir religioso. E nesse âmago encontra-se o que, para quem tem um olhar mais exigente, é do mais esquecido em religião: o Homem, os indivíduos na sua plena liberdade de opção e nos seus dramas pessoais, tantas vezes muito mais prementes que as formulações teológicas e os ditames organizadores das estruturas sociais.

Foi assim que lemos o seu In Nomine Dei, com uma profunda crítica ao tempo de guerra religiosa que invadiu a Europa Central depois da eclosão do Protestantismo. Foi muito mais, ainda, o que lemos no seu consagrado Memorial do Convento. Nesse magnífico texto, encontramos, numa envolvência de crítica constante, de inquietação dolorosa, a parceria entre a estrutura religiosa e a pessoa no que de mais individual ela tem. Parceria essa reveladora de feridas insanáveis no Portugal de setecentos, de cortes profundos em que a Inquisição e a vida de corte são espelhos de uma sociedade desencontrada.

No Evangelho segundo Jesus Cristo, temos a máxima humanização possível, que começa com a ideia de fuga da família de Jesus. Ao fugir, deixam para trás, sem aviso que possibilite semelhante sorte, todas as crianças que, assim, são sacrificadas moralmente por José. Que peso é este sobre um homem, um homónimo do escritos, que leva nos ombros, para Salvação da Humanidade, a culpa da morte de tantas crianças?

Há menos tempo, com Caim, Saramago lançava-se na complexa arquitectura de (d)escrever o Homem na busca do confronto com Deus. Caim, o homem pleno de Homem, procurou até ao ponto da aniquilação da Humanidade, o choque com o Criador. A Criatura anulou a Criação do Criador.

O seu percurso estava preenchido e definido. A sua "teologia" estava montada e explicada.

Como normalmente se diz, morreu em paz. Na sua Paz. Uma paz que é inquieta. Inquietude.

A nós, fica a leitura, para que aprendamos a conhecer o que é ser inquieto.

Que se leia o excepcional "Aprendamos o rito", de José Saramago

Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

3 comentários:

  1. Gostei da poesia.
    Quanto à crítica de Saramago à religião nada de novo abordou que não fosse já abordado an nível literario e científico a nível internacional. Quanto ao mito de Caim, fez a sua legítima interpretação sem ter em conta a discussão teológica do mito a nível sociológico e antropológico.

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  2. Quando perguntei a Saramago quais as principais influências literárias que o levaram ao ateísmo, respondeu-me que foram os autores franceses, especialmente da época do Iluminismo, como Holbach, Voltaire e Diderot. A resposta é reveladora não só por aquilo que diz (a referência a Holbach e a Diderot - duas das mais importantes e injustamente esquecidas referências do Iluminismo ateu), mas também, por aquilo que não disse. Não disse Nietzsche. Não disse Sartre. Não disse Freud. E não dizer tudo isso, é já dizer muito.

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  3. Mesmo dizendo-se ateu, sinto que Saramago nos conduz a uma profunda busca de transcendência. Se neste mundo "tudo o que é sólido se dissolve no ar" (Marx), reler o Ensaio sobre a Cegueira ou a Jangada de Pedra, leva a recriar os cenários da (nossa) história e a redescobrir os sentidos deste caminho colectivo, com humana inquietude na mira da Luz, da Justiça e da Paz. E o que haverá de + religioso e de + humano nesse caminho?

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