sábado, 8 de julho de 2017

PAI | - | FILHO: Dos espelhos e das fotos, de que matéria sou feito eu


Muito mais que o número, a imagem é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta. Talvez por isso exerça sobre nós tamanho poder. Revemo-nos no momento ao espelho, procurando a perfeição; imortalizamos o momento na fotografia, guardando a imagem. Em ambos os casos, somos nutridos pela sensação de exactidão, da veracidade dos contornos que nos são dados a conhecer pelo globo ocular, sem ter em conta que por trás do ver encontra-se o interpretar.
E muito da vida assenta na interpretação que fazemos do que o nosso globo ocular nos faculta generosa, mas caprichosamente. Se o espelho é a possibilidade de um qualquer Narciso se apaixonar por si mesmo, a fotografia é a vontade de parar o tempo, de o congelar num instante como se a vastidão do mundo fosse possível de arrumar num milímetro quadrado.
E nesse milímetro mínimo, não apenas pretendemos dar-lhe foro de tudo e toda a essência nele condensar, como pretendemos, depois, pegar nessa micro-realidade e, tendo-a como perfeita, dar-lhe direitos de soberania sobre tudo o resto.
A  imagem de Nuno Júdice é perfeita: “o teu corpo dobra-se, no espelho da memória, à luz frouxa da lâmpada que nos esconde. Puxo-te para fora da moldura” (“Retrato”). Fazemos a moldura condensando nela um momento e depois queremos ver o mundo através dessa imagem sem tempo. Idealizamos e cegamos, julgando que vemos, guiando na cegueira. É a continuada recriação do pensamento e da teologia que nos leva de Maimónides a Saramago.
Nestes momentos de perda, parece-me que seria muito mais interessante o mundo sem espelhos nem fotografias. Os espelhos, quando apareceram, lá pela Antiguidade, criaram problemas religiosos e de identidade tremendos. Quem estava do lado de lá da superfície brilhante e lisa?
"Espelho meu, diz-me quem é a mais bela?", diz a bruxa-má ao questionar o seu espelho sobre a sua beleza. Vemos o que vemos, mas vemos mais, vemos o que queremos. Se o não vemos, a identidade complica-se – como no caso da bruxa e da Branca de Neve; o desejo é sempre facto de sobreposição em relação ao real.
É de facto irónico que tenha sido o espelho o objecto usado ao longo dos milénios para confrontar, nos ritos de iniciação, o sujeito consigo mesmo, desmascarando a confiança em si mesmo, mostrando que o maior inimigo é a imagem ao espelho… isto é, nós mesmos. Aquele que está no espelho, sou e eu e é também a minha capacidade, ou quase destino, como que inata, de me opor a mim mesmo.
Mas os espelhos não são apenas aquelas peças bonitas, de superfície atraentemente lisa e pura de rugosidades e impurezas. Apela Shakespeare: “Não diga o meu espelho que envelheço“! O garante da juventude é o olhar para o amor, a dedicação e a entrega, que inebriando inibem a visão mais objectiva das rugas, das imagens do tempo e da sua voragem.
O espelho são os outros que nos servem de referencia, através de quem nos vemos nas suas faces. Num sentido edipiano, sempre dei por mim a confirmar a tese mítica de Freud. Mas, por mais estranho que pareça, por vezes dou por mim a ver-me como ao meu pai. Sim, nestes dias em que o Édipo é já o meu filho, e eu o possível ser a “morrer” às suas mãos, sinto cada vez mais uma proximidade assustadora para com o meu pai. Eu sou para o meu filho o que o meu pai foi para mim. Anulando-se as gerações, eu sou, literalmente, o meu pai, vivendo pela primeira vez os desafios dessa posição.
Quantas vezes, ao longo dos dias, percebo-me, até, em posições e expressões que eu recusaria conceber e admitir ainda há pouco tempo. Olho para mim na relação com o meu filho e vejo fotografias do meu pai comigo. Reconheço-me? “Esse que em mim envelhece assomou ao espelho a tentar mostrar que sou eu”, aponta Mia Couto (“Idades Cidades Divindades”); mas quem é quem neste jogo de olhares?
Mais que no meu filho em mudança rápida do início de vida adulta, sou eu que agora muda a uma velocidade estonteante. No ápice de um momento, passei a ser a geração que se segue. Na linha de montagem da memória, ou na cadeia alimentar do tempo, passei para a primeira posição. Obviamente, este eu já é outro. Recrio-me nesta vivência de orfandade.
É essencial o confronto com a imagem da Morte, naquilo que de atemporal ela tem. Desde há mais de quatro milénios que esse confronto se encontra ritualizado na vivênciação de mitos como o de Inanna. E a essencialidade encontra-se plenamente demonstrada no facto de hoje tudo ecoar na nossa mente, no nosso inconsciente colectivo ou subconsciente como se a ciência nada nos tivesse dado de novo.
E, verdade, não deu. Vivenciar nada tem a ver com conhecer. Talvez tenha um pouco a ver com Saber. E, no saber, entramos novamente no que é fundamental. O que é a morte? Seja a do mito recriado em rito, seja a de cada um de nós, em tudo semelhante ao rito em mas em nada igual a qualquer outra morte?
Quem seria na caveira que Hamlet pega e questiona? “Ser ou não ser, eis a questão”. O que é mais nobre perante a condição humana? O pensador responde-nos brutalmente poucos versos abaixo: “Morrer.. dormir: não mais”, ou “Morrer para dormir... é uma consumação”. Reagir ou sucumbir. Desafiar ou resignar, numa luta entre o fado e as moiras e o livre arbítrio, a responsabilidade da acção, mas também a liberdade de dizer Não! De optar e de escolher. Vida ou Morte, eis a questão.
Num acto morre-se e é-se chamado para a Vida. Cada vez dou mais sentido à frase de Saramago, quando dizia que quando morrer, morreriam duas pessoas. Ele e a criança que ele fora. Sim, cada vez me sinto mais longe de mim. Cada vez me sinto menos eu. Ou, talvez, cada vez me sinta menos a criança que fui, a criança que fui sendo cada vez menos, e a criança que quase nada sou.
Contudo, fica uma outra pessoa. Sem um espelho que constantemente usava, fico mais liberto para poder ser eu. É verdade que fica a fotografia idealizada. Mas fico também eu, leitor dessa fotografia, recriador da sua imagem.
Agora sou eu cada vez mais a imagem de um espelho que se transforma em fotografia, até que só haja fotografia e imagem congelada num tempo que não será o meu, mas o de outro transformado em pai, tal como eu agora o fui.
Afinal, sou ambos. Tal como meu pai o foi. Tal como o meu filho o será.

Pai | Filho
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12 comentários:

  1. Num mundo de mentes (espelhos) que distorcem, somente existimos realmente quando tudo somos e a amizade é o motor do enquadramento dos processos-vida.

    Abraço Fraterno

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  2. Caro Paulo , como sempre gostei MUITo dos teus textos :O do JL e este tão profundamente sentido e "espelhado", como se neste momento sentisses a tua orfandade e simultaneamente aquela que o teu filho e pq não a tua filha , também ? um dia sentirão. Um abraço grande da pr5ima e admiradora

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  3. Tu deverias ser o espelho de muitos! Aquilo que partilhas, aquilo que foste e és... provoca-me aquele equilíbrio que tqantas vezes necessito. Que bem hajas e que os TEUS descansem em paz!

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  4. Os meus sentimentos meu caro Paulo, conheço a tua força e os teus envolvimentos daqui ter como certo que enfrentas a perda com a força que ela bem merece pelo que dizes no texto. Do forte texto apetece-me retirar para todos nós que recebemos e damos muito;
    "O garante da juventude é o olhar para o amor, a dedicação e a entrega, que inebriando inibem a visão mais objectiva das rugas, das imagens do tempo e da sua voragem." Um abraço da maior consideração e muita amizade, António Pena.

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  5. Somos gerados na dor, pela dor e para a dor, mas a vida acrescenta-a, dota-a e transforma-a em sofrimento.
    A dor é momento, o sofrimento é estado. A dor é de uma separação, o sofrimento é de uma ausência. A dor remete ao físico, ao corpo; o sofrimento à alma, ao espírito.
    É isso... a perda do genitor pode causar dor; a do pai causa sofrimento.
    Certo dia também perdi o meu genitor, mas sofro ainda a ausência do meu pai.
    Podiam não ser, mas eram a mesma pessoa.
    Eu sei, amigo, o que se passa com essa perda, e mais, quando se converte em ausência, apesar de os pais e filhos, em si próprios, serem únicos.
    É nestes momentos que as fatuidades da existência nos acordam até para o logro do espelho. Apesar de tudo, nele observamos um arremedo de realidade, pois o que se vê no observado, à sua direita ou à sua esquerda, se encontrar na posição oposta à do observador.
    As imagens que guardamos, que por aí ficam, podem trazer-nos à lembrança essa perda, mas só a dimensão especulativa que tão bem caracterizas no teu texto, atualiza a sofrida verdade da permanente ausência.
    Como e onde encontrar algum conforto?!!!...
    Na esperança de poder ajudar a atenuar apenas a dor, aqui te deixo o abraço solidário e apertado de compreensão.
    Amigo sempre!...

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  6. Amigo. Excelente e profundo texto. A morte será sempre o eterno problema. Porque vivemos se depois morremos? Tudo o que nasce morre. Os que continuam a viver também morrerão. A evolução é isso. Por mais que queiramos não nos habituamos à morte... É por tal que nascem as crenças. Grande abraço nesta hora.

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  7. Caríssimo Paulo, um a3ração. Não te digo o que se costuma dizer nestas ocasiões porque nestes momentos,qualquer vulgaridade não faz sentido. É um atirar para trás das costas algo que desconhecemos mas constitui a razão do profundo sentimento do outro. Já passei por isso tudo, agora, serei eu. Agora, sou o legítimo representante de toda a família não só perante a morte, mas, fundamentalmente perante a Vida. Por isso sei o que sentes; o que te foi dado e o que tens a responsabilidade de transmitir. E o que tens a responsabilidade de dar é a vida. Essa, sabes tu dar através da tua sabedoria, a "Chochmah" judaica, o mais elevado dos graus da consciência vital. Porque a vida física também já deste... Só te posso desejar neste momento, querido Paulo, "Chazak uBaruch", Força e Bênçãos, e que a memória do teu pai esteja sempre presente entre os teus amigos.

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  8. Querido amigo Paulo e Família,
    Grande abraço fraterno nesta hora tão sublime que é despedirmo-nos daqueles com quem partilhámos as nossas vidas...no eterno espelho da vida, sempre seremos moldura...

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  9. Ao meu amigo Paulo:
    Gostaria talvez de mudar parte do passado antigo e do recente, mas não posso.
    Gostava de o ajudar a guarder o que foi bom no seu coração e na sua memória, mas não posso.
    Gostava de lhe dizer a palavra certa neste momento, Como não sei qual seria, não posso.
    Gostava de lhe dar neste dia um forte e sentido abraço. Esse sim, posso.
    Fernanda Albuquerque

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  10. Dear Paulo!
    My sincere condolences to you and your family, dear friend!

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  11. Dear Paulo!
    My sincere condolences to you and your family, dear friend! Today and always, may loving memories bring you strength. those we love never go away....they are always behind us, everyday...every moment

    Mayya

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