segunda-feira, 12 de agosto de 2013

“Tudo na vida” de Pedro Paixão, ou a deslumbrante destruição da linguagem



O erro não é das pessoas […] a vida é que está errada.
[…]
Tudo na vida devia ser diferente, disse. As palavras são o maior erro. Todas as palavras. Não há nada de mais inútil porque nada nos responde.
[…]
Mais tarde ou mais cedo acabas por descobrir que não saberes não quer dizer que alguém saiba. Nem a tua ignorância te salva.
Pedro Paixão, A Noiva Judia, p. 25.

Já não sabia porque deixara o livro do Pedro Paixão quase no início. Não sei quando fora, mas há bem mais de 10 anos, pelo que a falta desse laço da memória me faz depreender. Mas percebi de imediato. Tanta dor, tanta tristeza, tanta incapacidade de lidar com o mundo e tanta negação do eu. É duro este livro. É brutalmente vivido por uma vida intensa mas dolorosamente desistida de si mesma.
Numa escrita perfeitamente laicizada, “desencantada” de qualquer parcela de divino, e como imagem de um máximo de sentido, por vezes o desalento torna-se em chave de uma certa raiva e chega ao lugar-comum da negação e da culpabilização. “Antes de adormecer peço que Deus não exista para não poder ser tomado como responsável por todas estas atrocidades” (p. 17), pede uma das personagens informes, num humanismo, ao mesmo tempo profundo, mas ironicamente leve e descomprometido como quem poderia dizer qualquer outra coisa.
Mas na maioria das vezes, o desgosto e a dor irrompem de si mesmo, sem objectivo que não seja a dor em si mesma. Sem carga de ironia alguma, apenas com um sentido estético brutal na criação de afirmações de tristeza.
Num sublime exercício estético de linguagem, o grande argumento do livro é o silêncio enquanto vazio. A linguagem não serve para nada. Apenas o silêncio é o último refúgio. Mas esse refúgio é, já em si, capacidade de autoconhecimento. É mais que constatação, é verificação e capacidade de o pensar. O silêncio que leva à destruição não apenas verificado quando aconteceu. É verificado quando acontece e faz parte de uma tomada de sentido da vida, do devir humano. “Há dias que não falava com ninguém. Só consigo, frente ao espelho, a horas irregulares. Mas isso não é falar. […]. Pouco a pouco sentia que enlouquecia, e, pior que tudo, isso não o assustava. Os homens dedicados a si próprios acabariam todos ou por enlouquecer ou por tornar-se criminosos. Nisto se resumia a sua ideia de progresso da humanidade” (p. 27).
O lugar deixado pela abandono da linguagem, o abandono à não comunicação, mais que deixar o indivíduo sozinho, só consigo mesmo, como que o deixa sem nada. Mesmo sem si. “Era o tempo da expiação. Um vazio completo a ocupar a próxima hora. Sem isso vai-se tudo o resto, até tudo o que já passou” (p. 29), afirma, como se esse vazio tivesse o poder de apagar até a s memórias e as vivências. Não só não constrói, como destrói o que já teve lugar e que, assim, se esvai.
Dizer e agir. Ou não dizer enquanto acção tornam-se a máxima de uma forma de entender o passar do tempo, a história de vida, em que a linguagem marcaria o que, de facto, interessaria: “Quando volta estou estendido em cima da cama de sapatos e tudo. Ela fica de pé e observa-se sem dizer uma só palavra. É verdade que ela já me conhece. É uma vantagem, poupam-se palavras. Sempre me incomodou o abuso que delas se faz. Quantas frases disse eu ao todo na minha vida que de facto tivessem valido a pena ser ditas?” (p. 46). Para Pedro Paixão, nas suas personagens, nada mereceria o uso limite das palavras. “As mais belas recordações serão sempre mudas” (p. 47)
Para Pedro Paixão a linguagem é a face visível da acção. Fazer é sinónimo activo de dizer, quase num sentido genesíaco. “Do que conseguiu fazer nada se consegue ler na sua cara. E quando lhe perguntam : «O que é que faz?», esquiva-se à resposta, por dificuldade em voltar a encontrar aquilo que fez” (p. 43). Tudo se esvai na incapacidade de dizer. Não diz, não existe.
Mas alguma coisa ficará para a história do meu exemplar d’A Noiva Judia. À tarde, fui fazer uma compra nada usual, uma escova de aço para tratar de uma caliça a cair de uma parede. Paguei-a, e o pequeno autocolante com o código de barras como que me chamou. Encimado pela directa e bruta informação “escova de aço”, retirei-o da dita e coloquei-o, torto qb, mesmo abaixo do subtítulo do livro, mesmo na folha de rosto. Não, não é «ficção» o que este livro é. O autor, por comodidade ou outra coisa qualquer indizível, assim o rotulou. Mas ele é «destruição», por isso a nova etiqueta lhe fica tão bem. Lê-lo é passar-se numa escova de aço.

Usei a edição de 1999, a 8ª, feita em Lisboa, pelas Edições Cotovia.


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