O erro não é das pessoas […] a vida é que está errada.
[…]
Tudo na vida devia ser diferente, disse. As palavras são o maior erro.
Todas as palavras. Não há nada de mais inútil porque nada nos responde.
[…]
Mais tarde ou mais cedo acabas por descobrir que não saberes não quer
dizer que alguém saiba. Nem a tua ignorância te salva.
Pedro Paixão, A Noiva Judia, p. 25.
Já não sabia porque deixara o livro do Pedro Paixão quase no
início. Não sei quando fora, mas há bem mais de 10 anos, pelo que a falta desse
laço da memória me faz depreender. Mas percebi de imediato. Tanta dor, tanta
tristeza, tanta incapacidade de lidar com o mundo e tanta negação do eu. É duro
este livro. É brutalmente vivido por uma vida intensa mas dolorosamente
desistida de si mesma.
Numa escrita perfeitamente laicizada, “desencantada” de
qualquer parcela de divino, e como imagem de um máximo de sentido, por vezes o
desalento torna-se em chave de uma certa raiva e chega ao lugar-comum da negação
e da culpabilização. “Antes de adormecer peço que Deus não exista para não
poder ser tomado como responsável por todas estas atrocidades” (p. 17), pede
uma das personagens informes, num humanismo, ao mesmo tempo profundo, mas
ironicamente leve e descomprometido como quem poderia dizer qualquer outra
coisa.
Mas na maioria das vezes, o desgosto e a dor irrompem de si
mesmo, sem objectivo que não seja a dor em si mesma. Sem carga de ironia
alguma, apenas com um sentido estético brutal na criação de afirmações de
tristeza.
Num sublime exercício estético de linguagem, o grande argumento
do livro é o silêncio enquanto vazio. A linguagem não serve para nada. Apenas o
silêncio é o último refúgio. Mas esse refúgio é, já em si, capacidade de autoconhecimento.
É mais que constatação, é verificação e capacidade de o pensar. O silêncio que
leva à destruição não apenas verificado quando aconteceu. É verificado quando
acontece e faz parte de uma tomada de sentido da vida, do devir humano. “Há
dias que não falava com ninguém. Só consigo, frente ao espelho, a horas
irregulares. Mas isso não é falar. […]. Pouco a pouco sentia que enlouquecia,
e, pior que tudo, isso não o assustava. Os homens dedicados a si próprios
acabariam todos ou por enlouquecer ou por tornar-se criminosos. Nisto se
resumia a sua ideia de progresso da humanidade” (p. 27).
O lugar deixado pela abandono da linguagem, o abandono à não
comunicação, mais que deixar o indivíduo sozinho, só consigo mesmo, como que o
deixa sem nada. Mesmo sem si. “Era o tempo da expiação. Um vazio completo a
ocupar a próxima hora. Sem isso vai-se tudo o resto, até tudo o que já passou”
(p. 29), afirma, como se esse vazio tivesse o poder de apagar até a s memórias
e as vivências. Não só não constrói, como destrói o que já teve lugar e que,
assim, se esvai.
Dizer e agir. Ou não dizer enquanto acção tornam-se a máxima
de uma forma de entender o passar do tempo, a história de vida, em que a
linguagem marcaria o que, de facto, interessaria: “Quando volta estou estendido
em cima da cama de sapatos e tudo. Ela fica de pé e observa-se sem dizer uma só
palavra. É verdade que ela já me conhece. É uma vantagem, poupam-se palavras.
Sempre me incomodou o abuso que delas se faz. Quantas frases disse eu ao todo
na minha vida que de facto tivessem valido a pena ser ditas?” (p. 46). Para
Pedro Paixão, nas suas personagens, nada mereceria o uso limite das palavras. “As
mais belas recordações serão sempre mudas” (p. 47)
Para Pedro Paixão a linguagem é a face visível da acção.
Fazer é sinónimo activo de dizer, quase num sentido genesíaco. “Do que
conseguiu fazer nada se consegue ler na sua cara. E quando lhe perguntam : «O
que é que faz?», esquiva-se à resposta, por dificuldade em voltar a encontrar
aquilo que fez” (p. 43). Tudo se esvai na incapacidade de dizer. Não diz, não
existe.
Mas alguma coisa ficará para a história do meu exemplar d’A Noiva Judia. À tarde, fui fazer uma compra
nada usual, uma escova de aço para tratar de uma caliça a cair de uma parede.
Paguei-a, e o pequeno autocolante com o código de barras como que me chamou.
Encimado pela directa e bruta informação “escova de aço”, retirei-o da dita e
coloquei-o, torto qb, mesmo abaixo do subtítulo do livro, mesmo na folha de
rosto. Não, não é «ficção» o que este livro é. O autor, por comodidade ou outra
coisa qualquer indizível, assim o rotulou. Mas ele é «destruição», por isso a nova
etiqueta lhe fica tão bem. Lê-lo é passar-se numa escova de aço.
Usei a edição de 1999, a 8ª, feita em Lisboa, pelas Edições
Cotovia.
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