Já aconteceu muitas vezes, mas por estes dias volta a ser
notícia um falso Padre que enganou uma comunidade paroquial durante largo
tempo. Para além da dimensão ética mas, acima de tudo, judicial, onde surgem
roubos, dívidas e dinheiros em diversas variantes, há o lado religioso, o que
de mental isso implica nas populações, e o que de canónico se encontra
preparado pela (normalmente designada) Igreja Católica, como resposta para
situações semelhantes a esta.
Do lado do crente e a da comunidade religiosa, uma situação
desta natureza é um profundo e rude golpe. A prática, a pertença e a identidade
religiosa resulta de um acto de dádiva à comunidade em que cada crente como que
se abre, se entrega. O pároco é o garante dessa teia de relações onde cada um
se expõe, muitas vezes mais que perante a família, porque está exactamente
dentro de um grupo onde há um patamar de confiança que apenas o religioso
garante – o Padre é, no nosso imaginário, uma figura de isenção devido ao
segredo da confissão: numa comunidade religiosa, o Padre sabe do que mais
ninguém sabe.
Portanto, acordar um dia com a descoberta de que o pároco a
quem tantos entregaram os seus segredos, contaram as suas angústias, pediram
conselho, afinal não o era de verdade, torna-se inevitavelmente um grande
choque que, em muitos casos, poderá nunca mais ser superado na relação com a
figura que deveria ser, pelo entendimento católico, o mais fácil elo na relação
com Deus – no universo Protestante o Pastor tem, radicalmente, um papel
totalmente diferente pois está liberto desse “ónus” psicológico que é o de
aceder a níveis de intimidade que a confissão implica, para além da própria
noção de “pastor” que em nada toma a dimensão sacralizada do “sacerdote”.
Contudo, para além deste lado que leva mais para a
envolvência que a direcção religiosa implica, temos que olhar para um outro
lado da relação pároco / paroquiano: os sacramentos. E neste campo, talvez o
mais importante para uma larga fatia das pessoas de facto mais preocupadas com
a prática religiosa regular, com uma forte identificação com essas metas e
grandes momentos que são os sacramentos, a Igreja católica fez um percurso em
muito devedor à experiencia milenar da relação entre a ortodoxia e as margens,
muitas vezes até as consideradas heréticas.
De facto, a Igreja Católica em muito remeteu a validade dos
sacramentos para o lado da adesão incondicional, plena e imediata, do crente ao
que os gestos/símbolos e palavras significam. Portanto, por exemplo, se um baptismo
for realizado por um falso Padre, isso não implica a nulidade desse sacramento,
a validade não depende do celebrante mas de quem o recebe. Se quem o pediu –
porque é isso que o rito diz – o fez de livre vontade, consciente do que fazia,
então a Igreja Católica aceita esse baptismo como válido, pois o Padre funciona
apenas como elo da transmissão de algo que não era dele.
Nestes casos, obviamente, o maior problema religioso joga-se
na confiança que uma comunidade deixa de ter na autoridade eclesiástica, seja o
Padre que a pastoreia, seja o Bispo que não detectou esta situação. Uma
comunidade onde se deu uma situação destas demorará muito tempo a dar-se na
abertura, na espontaneidade e na verdadeira entrega que a dimensão católica
implica na triangulação entre Deus / Sacerdote / Crente.
com Fernando Catarino
artigo publicado na nossa secção «Religião na Cidade», na Life&Style do Público, a 9 de Abril de 2014.
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