Depois de várias polémicas sem resolução clara, a recente
decisão do Tribunal Constitucional, que veio dar razão a uma cidadã adventista
no seu direito a não trabalhar ao sábado, parece ter vindo criar uma
jurisprudência que virá ser a norma na resolução de muitos mais casos como
este.
A interpretação que era até agora dada da Lei de Liberdade
Religiosa apontava para que a possibilidade de adaptação do horário individual
mediante as práticas religiosas tivesse lugar num quadro em que já houvesse uma
flexibilização de horários e quando, obviamente, essa alteração em nada
beliscasse a produtividade.
Hoje, com esta nova posição dos juízes do Constitucional, é
afirmado esse direito como fundamental no quadro das liberdades individuais. No
fundo, como parte constitutiva da base e da identidade do ser e do indivíduo
perante o colectivo que é o Estado, do que é inalienável enquanto direito
constitucional.
E, realmente, é nesse patamar que a questão deve ser
equacionada se, porventura, quisermos olhar para a liberdade religiosa como um
elemento de consciência e não apenas como mais um proforma. No fundo, o que
temos perante nós é a tensão entre o direito à liberdade de consciência e o
dever de respeitar as normas do trabalho.
Mas em termos teológicos e de mentalidade, a questão é bem
mais profunda. A questão é antiga e remonta a uma das mais antigas funções
religiosas do Mediterrâneo: o prover de alimento, de paz e de estabilidade
social. No limite, para o crente, quem provê do sustento? O trabalho, o
empregador, ou Deus a cujos “representantes” muitas vezes, entrega parte do seu
rendimento do trabalho, exactamente porque os encara como dádiva?
É que o trabalho, mais uma vez, num sentido teológico, não é
apenas o que se consolidou como imagem dominante em parte da cultura católica:
o trabalho como uma pena, um resultado da “queda” e do pecado original. O
célebre “pão que o diabo amassou”. Não, nas culturas de raiz protestantes e
judaica, a ética do trabalho sedimentou-se numa visão teológica em que o
trabalhar é a continuidade que o homem realiza em relação à Criação divina.
Portanto, trabalhar não é castigo; trabalhar é continuar a acção de Deus
através de um mandato em que o planeta lhe foi entregue.
E aqui, olhar para o universo, o tempo, os momentos de
trabalho, já implica uma instrumentação mental completamente diferente para se
perceber o que está realmente em jogo.
Não se “falta” ao trabalho no sábado porque se vai
participar num rito. Mesmo que no sábado se participe num rito, a essência do
“sábado” não se encontra no rito. No limite, há uma diferença radical entre o
participar num ritual ou o aparente nada fazer…
participar num rito pode, algumas vezes, ser adiado, como no caso de uma
oração. Contudo, o fruir, o correr do tempo, reside já no patamar da plenitude do
entendimento do sagrado. Manter todo um dia sem trabalhar, como o defendem
judeus ou adventistas em relação ao sábado, dedicar um tempo inteiro e pleno a
um aparente “nada”, é, de facto, a máxima santificação.
Na sua raiz, a palavra «sacrificar» significa «fazer
sagrado», tornar sagrado. E santificar um dia é isso mesmo, sacrificar esse
dia, tornando todo o tempo e espaço em sagrados. Não há possibilidade de, em
consciência, um crente relativizar este princípio. Ou é, ou não é. Não pode ser
parte, ou um pouco mais tarde.
E não pode ser alterado por regra humana porque, mais que
tudo, esse tempo de dedicação ao seu sagrado é imagem de algo profundamente
ordenador do mundo. Guarda-se o sábado porque nesse dia Deus descansou depois
de completada a Criação. Portanto, guardar esse dia é repetir o acto e gesto
primordial de ordenação do mundo.
Nas tradições do Mediterrâneo, quando por regra religiosa se
para de trabalhar, é porque se está a glorificar esse mesmo trabalho,
colocando-o à altura do que de mais importante existe.
É uma rotação brutal na forma como nos habituámos a olhar
para a ética do trabalho. Mas a produtividade poderá ser a primeira a
agradecer.
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