Dia 1
Antes
Para além de libertador, viajar tem o seu quê de condenação,
de irredutível e de irreversível. Saímos do nosso espaço, do nosso gerir do
tempo e relações. No aeroporto, numa loja de produtos supostamente nacionais,
que desenvolvem toda a uma imagem em torno de lugar comuns de uma identidade,
tomo o meu “último” café, condenado a só sentir novamente o aroma de um Delta
daqui a dez dias. Até lá, apesar das possíveis doses de cafeína, nada se lhe
comparará, por mais que seja única a experiência de estar no Egipto. É assim.
Somos muito corpo, sabores e vícios.
Antes da vinda para o aeroporto, fui almoçar com os meus
filhos. No intervalo das aulas, lá fomos a um restaurante junto à escola, no
Campo Grande. Veio o Gonçalo, a Raquel a Matilde: todos. Foi uma forma de dizer
“até logo”, de estar junto ao mais importante. A Zé estava a trabalhar; fiquei
logo com saudades! Não tomei café.
Às previstas 14 horas, o grupo estava já reunido no sítio
combinado. O Francisco, atarefado, organizava, orientava. Mal sabia que o
primeiro voo se iria atrasar imenso, obrigando o grupo a um verdadeiro voo em
pleno aeroporto de Frankfurt, tentando não perder o avião para o Cairo.
O Gonçalo perguntou-me ao almoço se eu estava muito
entusiasmado. É verdade, chorei a primeira vez que fui a Tróia. O Egipto é para
mim bastante diferente. Se o essencial de Tróia se encontra exactamente na
época que me fascina, na passagem da Idade do Bronze para o Ferro, no final dos
grandes impérios do segundo milénio, o Egipto é isso, e muito mais, é tudo o
mais.
No Egipto, como os gregos tão sabiamente intuíram, tudo
nasceu. Não tudo, sim, mas muito do que é fundamental na construção do que
somos. Da ideia de conhecimento, do culto e da religião em torno da morte como
salvação, à medicina e à técnica, quanto de egípcios nós temos na forma de
organizar e de ler o mundo.
Quase tudo o que de sentido iniciático temos, elo Egipto foi
inspirado. Toda a mitologia que suporta a transcendentalização do indivíduo,
tornando-o deus, dando-lhe a imortalidade, veio desse vale próspero do Nilo.
Contudo, muito se perdeu. A ideia de pecado, a noção de que
a humanidade é falha, de que os prazeres são para serem subjugados a uma
vontade que os aniquila, ganhou, apesar de o Egipto defender exactamente o
oposto. E quanto somos herdeiros dessa linha que nos continua a desgraçar nos
divãs dos psicólogos!
Sim, estou entusiasmado. Mas, acima de tudo, estou
assombrado. Não sei como irei reagir em certos lugares, tal como não sabia que
iria chorar ao chegar junto das muralhas de Troia.
Sem comentários:
Enviar um comentário