No meu entendimento, obviamente
tolhido pelo defeito profissional, o “caso das praxes no Meco” trouxe à face
visível da nossa cultura popular o lugar que os rituais iniciáticos detêm na
nossa mitologia urbana. Enquanto historiador das religiões, tenho assistido a
um constante fascínio que tudo o que é “iniciático” tem tido, de forma
crescente, no nosso imaginário colectivo.
Dos “pactos de sangue”, aos Iluminatti de vários romances e filmes;
das recorrentes teorias da conspiração, à existência de uma “ordem mundial”
escondida; do efectivo grande crescimento que as ordens iniciáticas mostram
hoje (das mais antigas às mais recentes e menos ligadas a alguma tradição), às
constantes notícias que os nossos media
veiculam sobre os poderes da maçonaria; muito no nosso dia-a-dia gira em torno
do medo, muitas vezes do pânico, desses poderes escondidos que pretensamente
nos manipulam.
De facto, num fascínio que faz
vender livros, esgotar salas de cinema e vender jornais, cimentou-se plenamente
essa ideia que nos diz que há sempre um “big
brother watching you”… Mais, esse “big” em nada é “irmão”, fraterno, apenas
deseja oprimir, esgotar recursos, sugar tudo à sua volta e dominar o mundo,
qual regresso das teorias mais aberrantes do século XIX que desaguaram nos
fascismos do século XX – com os medos colectivos e irracionais cimentados em
obras como o Protocolos dos Sábios de
Sião, regou-se o ódio que terminaria no Holocausto.
Hoje, muito longe de se buscarem
responsabilidades no indivíduo que é cada um de nós, segue-se o caminho fácil
de um bode expiatório que, no melhor sentido conspiracionista, não se conhece,
não se vê, operando por poderes de controle emocional e por juramentos de um
poder tremendo. É a porta para o “eles” que pulula nas conversas de café.
Seja a Maçonaria ou o Opus Dei,
realidades existentes mas totalmente desconhecidas para quem faz juízos
rápidos, ou os conteúdos dos romances de Dan Brown, tudo se gere emocionalmente
no mesmo patamar de realidade, confundindo o que não é confundível. Vive-se a
realidade muitas vezes como se fosse um longo romance em que, num sentido
telenovelístico, há sempre um lado oculto, uma maquinação, uma dimensão
escondida. Sim, porque “eles” estão sempre aí! Especialmente quando não se
vislumbram… não os ver é prova de que nos observam e
dominam….
E esta mentalidade
mítico-ficcional emerge nos mais variados momentos, como foi o caso da tragédia
da praia do Meco. Em poucas semanas se amontoaram supostas provas claras de que
se tinha tratado de um rito de praxe, com alta pressão psicológica, senão,
mesmo, domínio da personalidade, em que um grupo de jovens se tinha deixado
manobrar totalmente por um superior hierárquico, numa prova que determinaria a
passagem a novas funções.
Os indícios eram dados como
provas e o quadro implicou mesmo verdadeiras reconstituições das praxes que
teriam ocorrido na malfadada noite. Tudo as televisões, os jornais e os
consumidores conseguiram colocar no quadro jornalístico para criar um rito
iniciático de grande violência e total alheamento das capacidades de decisão.
No final do inquérito, o que
fica? Exactamente um grande nada. Esse vazio de provas em relação aos ritos de
praxe num limite tão grande do domínio da personalidade, apenas corresponde ao
desejo que tivemos de que elas existissem.
Desejamos ardentemente, e a todo
o custo, ver em todo o lado esse papão da prova iniciática, do meio e das
personagens que dominam.
Incapazes de decidir, de optar e
de fazer grandes mudanças, precisados de ser dominados, sonhamos que vivemos
enclausurados, não percebendo que a liberdade estaria na capacidade de
interrogar e de questionar o que nos colocam à frente como verdade…
Esta é
a mais perigosa das alienações: já nem precisamos que nos dominem; alienamo-nos
através dos desejos do nosso inconsciente.Artigo no Público, a 7 de Agosto último.
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