sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Um regresso às praias do Meco - ou, o fascínio (mórbido) pelo iniciático

No meu entendimento, obviamente tolhido pelo defeito profissional, o “caso das praxes no Meco” trouxe à face visível da nossa cultura popular o lugar que os rituais iniciáticos detêm na nossa mitologia urbana. Enquanto historiador das religiões, tenho assistido a um constante fascínio que tudo o que é “iniciático” tem tido, de forma crescente, no nosso imaginário colectivo.
Dos “pactos de sangue”, aos Iluminatti de vários romances e filmes; das recorrentes teorias da conspiração, à existência de uma “ordem mundial” escondida; do efectivo grande crescimento que as ordens iniciáticas mostram hoje (das mais antigas às mais recentes e menos ligadas a alguma tradição), às constantes notícias que os nossos media veiculam sobre os poderes da maçonaria; muito no nosso dia-a-dia gira em torno do medo, muitas vezes do pânico, desses poderes escondidos que pretensamente nos manipulam.
De facto, num fascínio que faz vender livros, esgotar salas de cinema e vender jornais, cimentou-se plenamente essa ideia que nos diz que há sempre um “big brother watching you”… Mais, esse “big” em nada é “irmão”, fraterno, apenas deseja oprimir, esgotar recursos, sugar tudo à sua volta e dominar o mundo, qual regresso das teorias mais aberrantes do século XIX que desaguaram nos fascismos do século XX – com os medos colectivos e irracionais cimentados em obras como o Protocolos dos Sábios de Sião, regou-se o ódio que terminaria no Holocausto.
Hoje, muito longe de se buscarem responsabilidades no indivíduo que é cada um de nós, segue-se o caminho fácil de um bode expiatório que, no melhor sentido conspiracionista, não se conhece, não se vê, operando por poderes de controle emocional e por juramentos de um poder tremendo. É a porta para o “eles” que pulula nas conversas de café.
Seja a Maçonaria ou o Opus Dei, realidades existentes mas totalmente desconhecidas para quem faz juízos rápidos, ou os conteúdos dos romances de Dan Brown, tudo se gere emocionalmente no mesmo patamar de realidade, confundindo o que não é confundível. Vive-se a realidade muitas vezes como se fosse um longo romance em que, num sentido telenovelístico, há sempre um lado oculto, uma maquinação, uma dimensão escondida. Sim, porque “eles” estão sempre aí! Especialmente quando não se vislumbram… não os ver é prova de que nos observam e dominam….
E esta mentalidade mítico-ficcional emerge nos mais variados momentos, como foi o caso da tragédia da praia do Meco. Em poucas semanas se amontoaram supostas provas claras de que se tinha tratado de um rito de praxe, com alta pressão psicológica, senão, mesmo, domínio da personalidade, em que um grupo de jovens se tinha deixado manobrar totalmente por um superior hierárquico, numa prova que determinaria a passagem a novas funções.
Os indícios eram dados como provas e o quadro implicou mesmo verdadeiras reconstituições das praxes que teriam ocorrido na malfadada noite. Tudo as televisões, os jornais e os consumidores conseguiram colocar no quadro jornalístico para criar um rito iniciático de grande violência e total alheamento das capacidades de decisão.
No final do inquérito, o que fica? Exactamente um grande nada. Esse vazio de provas em relação aos ritos de praxe num limite tão grande do domínio da personalidade, apenas corresponde ao desejo que tivemos de que elas existissem.
Desejamos ardentemente, e a todo o custo, ver em todo o lado esse papão da prova iniciática, do meio e das personagens que dominam.
Incapazes de decidir, de optar e de fazer grandes mudanças, precisados de ser dominados, sonhamos que vivemos enclausurados, não percebendo que a liberdade estaria na capacidade de interrogar e de questionar o que nos colocam à frente como verdade…
Esta é a mais perigosa das alienações: já nem precisamos que nos dominem; alienamo-nos através dos desejos do nosso inconsciente.
                   
Artigo no Público, a 7 de Agosto último.

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