quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Papa, a amamentação e o barulho das crianças

É quase unânime que o papa Francisco tem tomado muitas iniciativas e posturas que, longe de alterarem os dogmas propriamente ditos, em muito beliscam as posturas e as formas instaladas que definiam o que era o ser cristão católico. Um dos campos mais interessantes encontra-se na forma mais aberta, mais leve, mas também mais na essência dos próprios rituais religiosos.
Olhemos hoje um pouco para temas que aqui na Life&Style são residentes: família e crianças. Ora, Francisco tem inovado bastante no que respeita a algumas posições mais restritivas que grande parte do clero católico tinha adoptado. O facto de o Papa ter batizado o filho de uma mãe solteira e a filha de pais casados civilmente, não se afigura como uma novidade teológica muito grande nem uma evolução (como chegou a ser dito), mas é um sinal, entre muitos outros, que o Sumo Pontífice passa para a hierarquia.
Mas Francisco tem ido ainda mais longe, especialmente quando olhamos para a forma como quer enquadrar, enquanto normalidade, as acrianças nos ritmos das práticas católicas. Numa recente cerimónia, bem ao jeito do Bergoglio que obviamente habita por baixo das vestes imaculadamente brancas do Papa, Francisco desdramatizava aquilo que tantas vezes é empolado e condenado nas celebrações católicas um pouco por todo o mundo: as crianças, na sua irrequietude e, muitas vezes, com o choro, atrapalham, desconcentram e retiram dignidade ao momento eucarístico.
Ora, o papa sugere mesmo que o coro que cantava na cerimónia se ouvirá, sim, mas as crianças não deixarão de se ouvir também, nem devem ser recriminadas por chorar, uma vez que, elas são "o coro mais belo".
Mas dentro de um certo puritanismo que nos contagiou ao longo dos séculos XIX e XX, Francisco recoloca o essencial da maternidade no centro devido, até em termos teológicos. De facto, ao longo dos tempos, as rotundas Virgens do Ó quase desapareceram dos altares, assim como as ainda mais impúdicas Virgens a amamentar. Numa religião e numa confissão que tanto se move e se inspira na dimensão da maternidade e da concepção, esta é uma ironia que demonstra o muito esforço que a Igreja fez em afastar a natureza mais humana do seu espaço mental.
Já numa entrevista, Francisco tinha desdramatizado a necessidade das mães darem de mamar às crianças durante as cerimónias papais (geralmente demoradas). Ora, várias vezes o voltou a fazer publicamente, afirmando que as mães não devem ter complexo algum em amamentar durante a cerimónia em causa, que o mais importante são mesmo as crianças e, se elas têm necessidade de comer, pois que se alimentem.
Por definição, as celebrações (religiosas, ou não) são momentos de festa, de alegria, de reunião de amigos e de pessoas que partilham uma mesma fé. A forma como o Papa desdramatiza estas duas questões, a naturalidade com que as apresenta e a alegria com que as transmite é reveladora daquilo que pretende para a Igreja. Uma Igreja que se quer mais aberta, mais acolhedora, mais festiva. Agora resta saber se o exemplo será seguido…

Com Fernando Catarino, na Life&Style do Público, a 6 de Junho passado.

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