sábado, 11 de junho de 2016

Em tempos de martírios, urge revisitar os «Mártires de Marrocos»


Tal como sucede para os mártires dos primeiros séculos do Cristianismo, onde a natureza por vezes verdadeiramente exótica dos milagres em torno de uma morte que é sempre um desafio ao “infiel”, também no caso destes mártires cristãos do século XIII, a procura do martírio parece ser mesmo o desígnio que os frades procuravam, apesar das inúmeras possibilidades de vida que lhes foram dadas, mesmo em quadros de verdadeira procura de um choque religioso que, obviamente, nunca terminaria bem.

Contudo, todos os dados e factos que nos chegaram pelas tradições escritas, por mais sólidos que ao longo dos séculos tenham parecido, movimentando crentes, fé e piedade, muito pouco parece ser factológico. É um campo de mito e de lenda onde se espraiam os desejos e as preocupações religiosas de uma época de extremos onde a busca da morte era muitas vezes a única via para um quadro quotidiano positivo, um sentido superior para a vida.

De que tenhamos conhecimento, a primeira versão desta complexa lenda dos mártires de Marrocos foi redigida ainda em vida de S. Francisco, intitulada Chronica Fratis Iordani a Iano, incluída na Analecta Franciscana. Terá sido no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra que se desenvolveram obras hagiográficas sobre os mártires franciscanos, surgindo documentos de devoção que relatavam os seus milagres. A sistematização deste grupo de lendas é de 1568, quando foi redigida a obra Tratado da Vida e Martírio dos Cinco Mártires de Marrocos, de João Álvares, uma adaptação portuguesa da Legenda Martyrum Marochii (obra de c. 1476).

O imaginário cristão foi tão forte em torno das tradições dos Mártires de Marrocos, que rapidamente a iconografia se desenvolveu. As primeiras obras artísticas dedicadas a este martírio também têm origem conimbricense, só depois passando a ser um assunto utilizado pelos artistas de todo o País, quer em quadros e esculturas, quer em gravuras ou peças de ourivesaria, proporcionando um dos temas mais recorrentes na iconografia portuguesa.

Contudo, os Santos Mártires de Marrocos não são, de facto, naturais de Portugal. São cinco frades italianos da região da Toscânia, de seu nome: Frei Berardo, pregador e arabista, Frei Otto, sacerdote, Frei Pedro, diácono, e Frei Adjuto e Frei Acúrsio, frades leigos, a que acrescia Frei Vidal, que presidia a missão.

A origem da missão encontra-se na II Assembleia Geral da Ordem Franciscana em Assis, onde Francisco de Assis elegeu esses frades como missionários em Marrocos. De Itália saíram os seis missionários rumo à Ibéria, de onde pretendiam partir para Marrocos.

E é logo nos primeiros momentos que a missão ganha contornos inesperados: em Aragão, Frei Vidal adoece gravemente e fica impossibilitado de prosseguir junto com os seus companheiros. Sem outra solução, nomeia para o substituir na presidência da missão Frei Berardo. Debilitado, Frei Vidal acabaria por morrer sem a coroa do martírio, poucos dias após a notícia da morte dos cinco frades.

Seguindo caminho, os missionários dirigem-se a Coimbra, onde D. Urraca lhes dá guarida. Num misto de fé e de misticismo, a rainha suplica aos frades que lhe revelem o momento da sua morte. Relutantes, acabam por predizer que a vida de D. Urraca apenas chegaria ao seu termo quando de Marrocos os cristãos trouxessem a Coimbra os seus corpos martirizados.

Nesta estadia em Coimbra, um jovem, Fernando de Bulhões, que, mais tarde, será outro grande santo português (Santo António) terá ouvido as suas prédicas no mosteiro de Santa Cruz, episódio que em muito lhe influenciou a vida.

Pararam ainda em Alenquer, vila que recebera foral em 1212 de D. Sancha (beatificada, com as suas irmãs Teresa e Mafalda, em 1705), filha de D. Sancho I. Aí, a princesa, irmã do rei D. Afonso II, os dotou de víveres e trajes de mercadores, com os quais se deveriam disfarçar quando chegassem a Sevilha.

Iniciando uma postura de assumida afronta, denotando a crença na posse do Espírito Santo que, não apenas os livraria de qualquer medo, como os dotaria das palavras que levariam à imediata conversão dos mouros. Sem medo algum, trocaram as vestes, generosamente ofertadas por D. Sancha, pelo hábito franciscano e, assim vestidos, apresentaram-se na mesquita de Sevilha, onde iniciaram a sua pregação diante de uma multidão de muçulmanos. Julgando-os loucos, foram escorraçados da mesquita.

Frei Berardo e os companheiros conseguem, supostamente, apresentar os fundamentos da doutrina cristã perante Abu El-Ola, que governava Sevilha em nome de El-Mansur. Ainda sem terem passado ao Norte de África, os missionários são colocados perante a escolha da vida ou da morte. Obstinados na sua vontade, El-Ola obrigou-os a escolher entre renegar a fé ou serem mortos. Os frades optaram pelo martírio, se bem que ainda fosse nesta data que o conseguissem. Foram poupados e levados como prisioneiros para a monumental atalaia de defesa da cidade junto ao Guadalquivir, mais tarde batizada como Torre del Oro.

Os missionários em nada desistiram do seu intento, e mesmo prisioneiros, continuaram a tentar converter “infiéis”. Perante esta temerária atitude, foram encarcerados nos pisos mais isolados e profundos da fortaleza, e sujeitos à fome e a maus tratos físicos.

Impressionado com a situação e sentindo-se incapaz, pelos seus esforços, de os fazer abjurar da fé no Cristianismo, Abu El-Ola deu ordem para que fossem entregues a um fidalgo castelhano, Pedro Fernandes de Castro, que embarcava para Marrocos.

Em Marrocos, foram levados ao Infante D. Pedro de Portugal, filho de D. Sancho I, que, devido a conflitos com o irmão, D. Afonso II, se havia refugiado junto do Miramolim. D. Pedro, que nos referidos conflitos tomara partido de D. Sancha, que já acolhera estes mártires em Alenquer, deu-lhes hospedagem e ouviu a sua história. Conhecedor de Marrocos, onde estava ao serviço do Miramolim almóada, aconselhou os frades a não pregarem. Contudo, de nada resultaram os avisos de prudência. À primeira oportunidade, saíram do palácio e foram pregar junto das populações muçulmanas.

Temendo pela segurança dos missionários, D. Pedro conduziu-os a Ceuta onde os julgou em mais segurança para regressarem a terras cristãs. Mas de imediato os religiosos ignoraram a preocupação e os cuidados do infante, e regressaram, tendo sido novamente presos.

Adensando a incerteza sobre o que se terá passado nesta mirabolante história, contam as tradições que, após vinte dias de prisão, o povo islâmico se terá amotinado, exigindo a libertação dos missionários. Atribuíam aos maus tratos de que os cativos eram vítimas no seu cárcere a causa de uma epidemia que alastrava por toda a cidade.

Foram reconduzidos à proteção de D. Pedro, passando a acompanhar o infante português. Numa expedição em que D. Pedro acompanhou o Miramolim, Frei Berardo terá realizado um famoso milagre da água: perante um exército sedento, o frade bateu três vezes com o báculo numa pedra donde brotou uma fonte que saciou a sede às hostes militares, reproduzindo o gesto milagroso de Moisés no deserto.

Contudo, e apesar deste milagre que muito bem deve ter caído nas hostes muçulmanas, quando regressaram à cidade, os frades ousaram converter o Miramolim, em pleno dia de festa religiosa. E o soberano acabou por ordenar a sua prisão e tortura.

Mas o desejo de martírio era muito mais forte que o sentido da preservação da vida. Apesar de a populaça interceder novamente pelos frades e de, mais uma vez, eles serem enviados para Ceuta, eles regressaram de novo, fazendo recair sobre si a ira.

No dia 16 de Janeiro de 1220, foram chamados à presença do Miramolim. Num quadro de significativa generosidade, os frades não renunciaram à sua fé, e preferiram injuriar o Profeta Maomé, atingindo o desejado martírio que, aliás, já tinham previsto em Coimbra.

Terá sido o próprio Miramolim a degolar os frades com a sua própria espada. Despedaçados, os seus corpos foram espalhá-los pelos campos, já que o fogo não os consumira. Recolhidos depois, por alguns mouros, os corpos despedaçados foram entregues a D. Pedro, que os doou a João Roberto, cónego do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Ainda nesse ano, a 10 de Dezembro de 1220, as relíquias foram recebidas em Coimbra por D. Afonso II.

O culto a estes Santos Mártires foi imediato e desenvolveu-se bastante até aos séculos XV-XVI. Em Santa Cruz surgiu a Confraria dos Invictos Santos Mártires de Marrocos, e um pouco por toda a região coimbrã nasceram tradições das mais inesperadas em torno deste grupo de franciscanos.

No dia 16 de Janeiro, realizava-se a Procissão dos Nus, com início no rocio de Santa Clara, junto ao Convento de S. Francisco da Ponte, que terminava na igreja do mosteiro de Santa Cruz. Esta Procissão dos Nus, diz a tradição, terá tido origem numa promessa de um habitante da localidade de Fala, dos arrabaldes de Coimbra. No ano de 1423, aquando de uma epidemia de peste, este terá prometido aos Mártires, no caso de cura dos filhos, todos os anos ir em procissão com os filhos, nus da cintura para cima e dos joelhos para baixo, rezar no mosteiro de Santa Cruz. Após ter sido a maior procissão da cidade no século XVIII, ela foi suspensa em 1798 por constantes desacatos.

1 comentário:

  1. Santo Inácio Loyola (fundador da Companhia de Jesus) tinha grande admiração por Santo António de Coimbra (não é Lisboa ou Pádua) porque foi este contacto com os Mártires de Marrocos que levou Fernando de Bulhões a optar pelo hábito franciscano em Coimbra.

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