Um olhar para o distante início da monetarização
"Se um dos teus irmãos empobrecer, e não satisfizer as
suas obrigações para contigo, protegê-lo-ás, mesmo que seja um estrangeiro ou
um inquilino, e deixa-o viver contigo. Não receberás dele juros nem lucro
algum, mas teme o teu Deus para que o teu irmão viva contigo. Não lhe emprestes
o teu dinheiro com juros, nem lhe dês os teus mantimentos para disso tirar
proveito."
Levítico (25, 35)
Há, por vezes, uma sabedoria que rasga os tempos e irrompe
na nossa mente como um trovão que nos remete para as forças ancestrais da
natureza. Alguns dos textos mais antigos da humanidade têm esse condão, o de
nos despertar para o essencial, subtraindo-nos ao supérfluo. Quando nos parece
que andamos enredados em soluções fast-food que nada nos trazem de novo, há
sempre uma lufada de ar fresco numa esquina a que nos propúnhamos passar.
Uma dessas esquinas ou encruzilhadas civilizacionais
encontra-se no mapa da Bíblia, num inesperado texto de carácter muito formal.
Esse texto, muito ligado ao legalismo, portanto, aparentemente pouco rico em
aspectos de humanismo, é o Levítico. Seja-se crente, ou não, nos tempos que
correm, este texto está repleto de boas práticas económicas vindas dos
primeiros séculos de monetarização da economia.
Na mentalidade antiga, o lucro era
um resultado que espelhava uma relação com o divino. Temia-se o deus que
possibilitava a riqueza. A forma como se geria essa riqueza dada ou
possibilitada pelo deus era imagem do que essa mesma divindade poderia pedir em
contas num juízo final.
Pela prática apontada pelo
Levítico, se uma das partes contratuantes não consegue cumprir o estipulado, em
vez de se exigir o pagamento, levando a uma ainda mais profunda e irreversível falência,
criam-se as condições para uma evolução financeira que possibilite a retoma da
actividade e um futuro pagamento, diríamos nós, sustentado.
A cobrança de dívida é, desta
forma, travada nos momentos limite. O aparentemente defraudado cobrador
transforma-se naquele que deve criar as condições para que o que está em falta
volte a poder cumprir os seus deveres.
Muito inteligentemente, esta forma de acção e de protecção
é um verdadeiro investimento no futuro, potenciando, a médio e longo prazo,
efectivas cobranças da dívida na totalidade, e não apenas as cobranças
parcelares que o curto prazo por hastas realizaria.
O que de essencial tem este pequeno excerto antigo é
exactamente o facto de ser antigo, moldado pelo muito correr de água debaixo de
pontes. Muita falência, muita gente passada à escravatura por impossibilidade
de pagar as dívidas tinha sido retirada à massa produtora e pagante de
impostos. Quem lucrava com isso? Obviamente, ninguém lucrava com uma situação
económica em que parte da população deixasse de ser produtiva. A longa passagem
dos séculos demonstra-o bem. A nossa escassa memória colectiva social
afasta-nos de conclusões acima do pensamento diário das bolsas.
Introduzida na economia do Mediterrâneo no início do I Milénio
a.C., quatro séculos depois, as principais culturas dessa região deparavam-se
com sistemáticos problemas de endividamento que colocavam os próprios sistemas
políticos em risco – como hoje, diríamos nós.
Este é o confronto da História enquanto modelo. Não porque
a História seja o campo do exemplo de morais e práticas que devamos imitar. Mas
porque nos mostra como somos novatos nisto de saber como funcionam as economias
e, em especial, as pessoas e as sociedades quando as crises as afectam.
Realmente, imaginemos uma
sociedade em que os endividados são acolhidos em “casa” para voltarem a ser
produtivos e a pagar impostos? Era bem pensado… e já alguém o pensou há cerca
de 2.500 anos. Talvez nunca ninguém o tenha levado à prática.
Jornal Público, 15 de Janeiro de 2011, p. 36.
COMENTÁRIO BEM OPORTUNO!... O ensinamento está lá no Levítico, não há dúvida. E até somos tentados a pensar que isto poderia ser aplicado, à letra, às fragilizadas nações do «desconsertado» concerto europeu, uma vez que estão irmanadas na herança da tão propalada civilização judaico-cristã. Mas...
ResponderEliminar... mas o problema é hermenêutico: as interpretações do texto são díspares e desirmanadas. O texto diz: «Se um dos teus irmãos...» Uns, os «irmãos» endividados, poderão reclamar a letra da lei divina; mas os outros, os emprestadores, acharão que isso é idealização histórica de uma etnia, um povo, de um tempo, de que não se reconhecem partícipes, nem a abrir portas nem a partilhar compassos... porque «ele» (juros incluídos) custa muito a ganhar... É preciso muito ardil, muita manha, muita marosca, muita combina, onde se gastam muitas «luvas»... para que «ninguém» passe frio. O resto, nem a «resto de Israel» chegará...
Estimado Paulo necessária e segura reflexão.
ResponderEliminarConcordo com o comentário anterior, o problema é de interpretação. Faz algum tempo que os textos sagrados sofrem com a interferencia de desautorizadas hermenêuticas.A própria relação de parceria judáico-cristã já demonstra o rumo que se daria às interesseiras interpretações - caminhar junto no essencial. O que é mesmo essa essencia? Usufruir de privelégios. Essa é ao meu ver a chave hermeneutica que move o ambiguo mundo desses religiosos.
Por muito que encontremos pontos de reflexão hermenêutica nestes princípios que o Levítico que nos propõe, a sabedoria que contém vai muito além dela. Corresponde a uma proposta para uma outra ordem de valores e de relacionamento interpessoal e intercomunitário. Creio que sempre houve, ao longo dos tempos, quem "arriscasse" segui-los. E, sempre haverá. Quanto às grandes nações, é uma outra questão. Afinal, não se pode servir a Deus e ao dinheiro! E entre um e outro, sabe-se bem qual é o escolhido da grande maioria da humanidade!
ResponderEliminarCheguei agora, pela primeira vez, ao blog. Acho muito interessantes as reflexões no post e nos comentários. Mas tendo só agora qui chegado comento apenas o título do blog. Já tinha ouvido dizer por aí que afinal não havia purgatório. Mas na 6ªf ouvi na rádio o pde Moreira das Neves garantir que tal parque de estacionamento das almas fora inventado tardiamente, na já longa história do cristianismo e que, de ciência certa, não existe. Fiquei muito desanimado porque, ateu, só me resta o inferno. A menos que se venha a provar que também não existe. Quiçá aqui no "Purgatório" estas dúvidas ontológicas possam ser esclarecidas.
ResponderEliminar