domingo, 12 de maio de 2013

Mikhail Petrovich Artzybashev, O judeu (Estrofes & Versos, 2010.)


Mikhail Petrovich Artzybashev, O judeu, Estrofes & Versos, 2010.

De forma inesperada, dei por mim na Ler Devagar a folhear um livro para mim completamente desconhecido. O autor, nascido na Ucrânia, vivera na Rússia e o seu período de vida decorrera entre 1878 e 1927.
O Judeu, uma pequena obra, de pouco mais de vinte pequenas páginas, trata uma situação que deveria estar muito nas mentes desse tempo: a guerra, a devastadora belicosidade entre os Estados europeus, que lançava milhões de anónimos soldados para situações de esgotamento físico, psicológico e moral, levando-os para níveis de sub-humanidade para nós hoje totalmente desconhecidos, onde as trincheiras eram verdadeiras valas comuns, e onde o gás mostarda fazia a decomposição da carne sem ter em conta qualquer limite acordado entre nações para uma suposta ética de guerra.
Este conto trata de um grupo de militares que, após dias de dolorosos combates em quadro de total abandono no terreno, se perde. Procurando um rumo, uma direcção para caminhar, deparam-se com semelhante grupo inimigo. Frente a frente, a morte de quase todos eles era o inevitável. A escassos metros de distância, nada os poderia salvar.
O inesperado surge, dando-nos uma visão romântica, claro, mas surpreendente do que as identidades pode conseguir. Estamos na Europa Oriental, depois de um século onde o antissemitismo tinha sido gerado em grandes preconceitos. Estamos, também, num quadro onde os judeus são vistos acima, ou além das nações. Esse bem comum, como que os leva para um denominador que os une: a humanidade, aliás, palavra várias vezes usada neste texto.
Deixo aqui o final desse conto, tendo alterado apenas uma ou outra gralha. De resto, tudo foi deixado como se encontra na edição indicada. Leiam, merece a pena, sob o ponto de vista de um sentido de Humanidade:

Exactamente no instante em que a tensão atingiu o seu ponto mais alto e o pesadelo se preparava para dar lugar a um sentimento implacável, Hershel Mak, incapaz de controlar os seus nervos esfrangalhados durante mais tempo, começou a rezar na língua dos seus antepassados. Shma Isroel! Shma Isroel! Os seus camaradas não o entenderam e olharam-no aterrorizados, como quem olha para um louco, mas do outro lado uma voz assustada e dolente respondeu-lhe em judaico:
- Um judeu!... Um judeu!
O coração de Hershel Mak caiu-lhe aos pés. A alegria louca que se apoderou dele é indescritível. Foi uma alegria humana sincera que o encheu até à borda, quando do lugar de onde esperava que viesse apenas a morte e ódio lhe chegaram palavras humanas e familiares. Esquecido do perigo de morte, caiu de joelhos, ergueu os braços e gritou, como se estivesse a responder a uma voz em pleno deserto.
- Eu!... Eu!...
Ouviu-se um tiro; mas apenas o boné de Mak tombou e caiu na poça de lama. Do outro lado do rio, uma cabeça típica, com as orelhas a aparecer por debaixo do capacete luzidio, fitou-o nos olhos.
- Não atires, não atires! – gritou Hershel Mak em russo, alemão e judaico tudo ao mesmo tempo, agitando freneticamente as mãos. E o outro judeu, envolto numa longa capa cinzenta, também gritava qualquer coisa aos seus colegas soldados. Agora, em vez de apenas um, eram cerca de dez os pares de olhos que estavam fixos em Hershel Mak, espantados e subitamente alegres. Uma esperança vaga e indefinida reflectia-se nesses olhares humanos assustados, que de repente se tornaram vulgares. Em seguida, Hershel Mak e o judeu de capa cinzento-clara avançaram pela clareira e, patinhando na água, correram, confiantes, um para o outro.
Pararam entre as duas fileiras de canos de espingardas ainda hostis e abraçaram-se, num acesso exagerado de felicidade.
- És judeu? – perguntou o soldado cinzento. Continuavam a olhar um para o outro, como dois velhos amigos que se encontram onde menos esperavam que isso acontecesse.
Ao entardecer, depois de os soldados recolherem os respectivos mortos e feridos, cada um seguiu o seu caminho ao longo da ravina, agora azulada com a neblina do fim do dia. Os da rectaguarda estavam sempre a virar-se para o inimigo, que os observava desconfiado, e a agarrar nervosamente com as mãos os canos das suas armas.
Só Hershel Mak e o judeu de capa cinzento-clara caminhavam calmamente. Hersehel tagarelava como um macaco, metendo conversa com um soldado, depois com outro. Falava sobre a alegria que o invadira, sobre a grande missão do judaísmo. Mas ninguém o escutava e um dos soldados até disse, bem disposto:
- Vai para o diabo, porco judeu.


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