Mikhail Petrovich Artzybashev, O judeu, Estrofes & Versos, 2010.
De forma inesperada, dei por mim na Ler Devagar a folhear um
livro para mim completamente desconhecido. O autor, nascido na Ucrânia, vivera
na Rússia e o seu período de vida decorrera entre 1878 e 1927.
O Judeu, uma
pequena obra, de pouco mais de vinte pequenas páginas, trata uma situação que
deveria estar muito nas mentes desse tempo: a guerra, a devastadora
belicosidade entre os Estados europeus, que lançava milhões de anónimos
soldados para situações de esgotamento físico, psicológico e moral, levando-os
para níveis de sub-humanidade para nós hoje totalmente desconhecidos, onde as
trincheiras eram verdadeiras valas comuns, e onde o gás mostarda fazia a
decomposição da carne sem ter em conta qualquer limite acordado entre nações
para uma suposta ética de guerra.
Este conto trata de um grupo de militares que, após dias de
dolorosos combates em quadro de total abandono no terreno, se perde. Procurando
um rumo, uma direcção para caminhar, deparam-se com semelhante grupo inimigo.
Frente a frente, a morte de quase todos eles era o inevitável. A escassos
metros de distância, nada os poderia salvar.
O inesperado surge, dando-nos uma visão romântica, claro,
mas surpreendente do que as identidades pode conseguir. Estamos na Europa
Oriental, depois de um século onde o antissemitismo tinha sido gerado em
grandes preconceitos. Estamos, também, num quadro onde os judeus são vistos
acima, ou além das nações. Esse bem comum, como que os leva para um denominador
que os une: a humanidade, aliás, palavra várias vezes usada neste texto.
Deixo aqui o final desse conto, tendo alterado apenas uma ou
outra gralha. De resto, tudo foi deixado como se encontra na edição indicada.
Leiam, merece a pena, sob o ponto de vista de um sentido de Humanidade:
Exactamente no instante em que a tensão atingiu o seu ponto
mais alto e o pesadelo se preparava para dar lugar a um sentimento implacável,
Hershel Mak, incapaz de controlar os seus nervos esfrangalhados durante mais
tempo, começou a rezar na língua dos seus antepassados. Shma Isroel! Shma Isroel! Os seus camaradas não o entenderam e
olharam-no aterrorizados, como quem olha para um louco, mas do outro lado uma
voz assustada e dolente respondeu-lhe em judaico:
- Um judeu!... Um judeu!
O coração de Hershel Mak caiu-lhe aos pés. A alegria louca
que se apoderou dele é indescritível. Foi uma alegria humana sincera que o
encheu até à borda, quando do lugar de onde esperava que viesse apenas a morte
e ódio lhe chegaram palavras humanas e familiares. Esquecido do perigo de
morte, caiu de joelhos, ergueu os braços e gritou, como se estivesse a
responder a uma voz em pleno deserto.
- Eu!... Eu!...
Ouviu-se um tiro; mas apenas o boné de Mak tombou e caiu na
poça de lama. Do outro lado do rio, uma cabeça típica, com as orelhas a
aparecer por debaixo do capacete luzidio, fitou-o nos olhos.
- Não atires, não atires! – gritou Hershel Mak em russo,
alemão e judaico tudo ao mesmo tempo, agitando freneticamente as mãos. E o
outro judeu, envolto numa longa capa cinzenta, também gritava qualquer coisa
aos seus colegas soldados. Agora, em vez de apenas um, eram cerca de dez os
pares de olhos que estavam fixos em Hershel Mak, espantados e subitamente
alegres. Uma esperança vaga e indefinida reflectia-se nesses olhares humanos
assustados, que de repente se tornaram vulgares. Em seguida, Hershel Mak e o
judeu de capa cinzento-clara avançaram pela clareira e, patinhando na água,
correram, confiantes, um para o outro.
Pararam entre as duas fileiras de canos de espingardas ainda
hostis e abraçaram-se, num acesso exagerado de felicidade.
- És judeu? – perguntou o soldado cinzento. Continuavam a
olhar um para o outro, como dois velhos amigos que se encontram onde menos
esperavam que isso acontecesse.
Ao entardecer, depois de os soldados recolherem os
respectivos mortos e feridos, cada um seguiu o seu caminho ao longo da ravina,
agora azulada com a neblina do fim do dia. Os da rectaguarda estavam sempre a
virar-se para o inimigo, que os observava desconfiado, e a agarrar nervosamente
com as mãos os canos das suas armas.
Só Hershel Mak e o judeu de capa cinzento-clara caminhavam
calmamente. Hersehel tagarelava como um macaco, metendo conversa com um
soldado, depois com outro. Falava sobre a alegria que o invadira, sobre a
grande missão do judaísmo. Mas ninguém o escutava e um dos soldados até disse, bem
disposto:
- Vai para o diabo, porco judeu.
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