…não quero ficar com o peso da perda de muitas vidas na consciência…
Quando no século XIII se terá escrito pela primeira vez em português a palavra «cristandade», estava a Europa Ocidental num dos mais fervorosos rebates anti-islâmicos. Num quadro de “reconquista-cristã” na Península Ibérica, e com a ênfase quase irracional das Cruzadas, a Europa que se via cada vez mais como cristã, fazia aderir à própria noção de espaço a ideia de religião. A Europa era, por definição, cristã. Assim o foi por muitos séculos, tendo-se vivido um longo período de acalmia à sombra do “paradigma” religioso vigente. Em Portugal, depois das matanças de judeus, de expulsões destes e de muçulmanos, depois de perseguidos os erasmistas e os luteranos, depois de três séculos de Inquisição, no Censos de 1900, menos de 5.000 pessoas se declaravam não católicos.
Hoje em dia o quadro é muito diferente, mas os recentes “atentados” / matanças de Oslo mostram-nos como esta noção de Cristandade ficou enraizada e como ela pode constituir campo privilegiado para que mentes deformadas encetem discursos irracionais e perigosos, construindo narrativas assassinas, tornando, mais uma vez, presentes no nosso quotidiano, aquilo a que desde há várias gerações não se assistia neste nosso “ocidente”: a violência tendo como leit motiv a religião.
Discursos como os de Raimond Panikkar ou Lanza Del Vasto que, fortemente influenciados por Mahatma Gandhi, reformularam os princípios da não-violência, adoptados por este último, numa linguagem cristã (por exemplo: Lanza Del Vasto, Pèlerinage Aux Sources, Paris, 1943), imprimiram-nos um “novo” olhar sobre o outro, fazendo-nos olvidar o nosso passado religioso sangrento e tortuoso.
Contrariamente a estas linhas filosóficas, a Islamofobia tem crescido imenso na Europa: nas duas últimas décadas, nasceram movimentos, mais ou menos informais, que lançam discursos verdadeiramente incendiários em cidadãos menos capazes de digerir a informação que recebem e de a catalogar no lugar que merecem: lixo.
Sintomático do descontentamento crescente, dos desequilíbrios entre cultura e natureza, da tão falada crise de valores e, por fim, da crise económica, nada melhor do que encontrar um inimigo comum, um objectivo que une em torno de algo, nesta época em que vivemos, tão profícua em fragmentações. Uma suposta invasão islâmica surge como o discurso fácil em tempos de crises variadas e cada vez mais consolidadas.
Quem usa correntemente uma conta de e-mail já recebeu, de certeza, algum dos inúmeros produtos, slides, geralmente, com dados e supostos factos sobre o crescimento do Islão na Europa. São produtos de uma pobreza deprimente, com dados, regra geral, errados, deturpando a realidade, que chegam com uma eficácia demolidora a uma parte muito significativa da nossa população mais reticente à actual mobilidade migratória.
Ainda estamos muito longe de perceber exactamente como enveredou Anders Breivik pela “ideologia” que veio a materializar neste malfadado Julho de 2011. Possa ele considerar-se cristão, ou não; Devamos colar-lhe o rótulo de “fundamentalista”, ou não; O centro da sua reflexão estará, sem dúvida, numa primária islamofobia, exactamente a mesma que encontramos nesses perturbadores e-mails que circulam e nos inundam as caixas de correio ciclicamente.
Mas o mais desconcertante é a adesão com que muita supostamente bem informada gente adere a esses e-mails e os replica pela internet. Em tempos, não muito distantes, dei por mim a responder a quem me enviava essas mensagens. Reunia dados, fazia textos… mas desisti. Para que servia a minha argumentação se o meu “inimigo” era uma fobia, algo que não se combate com métodos racionais.
Certo dia, numa conferência organizada por um amigo, dei por mim frente a frente com alguém que dias antes me enviara uma mensagem dessas. O tema era mesmo o das fobias, dos medos que as religiões criam nos cidadãos. No final da minha “fala”, como se diz no Brasil, ele colocou-me uma questão: “Mas não devemos ter receio de que a Europa venha a ser islamizada?”.
A resposta que lhe dei foi longa. Sem nunca dizer que tinha sido dele a mensagem, contei o episódio que ele protagonizara comigo. Apenas me lembro do que lhe disse no fim: “O que acha que civilizacionalmente avança com o reenvio de e-mails como este que lhe descrevi? Os dados são falsos, o incitamento a uma reacção dura é claro… grande parte dos muçulmanos hoje existentes na Europa são cidadãos europeus como nós. Que lhes fazemos se vingarem as ideias defendidas nesses e-mails? Não são estrangeiros, não os podemos deportar… colocamo-los em campos de concentração? Não sei em que pode desaguar este crescente fluxo anti islâmico. Apenas sei que eu não quero ficar com o peso da perda de muitas vidas na consciência. Quem faz a replicação desses e-mails, mais tarde, ou mais cedo, recolherá esse peso.”
Jornal Público, 29 de Julho de 2011, p. 30.
Jornal Público, 29 de Julho de 2011, p. 30.
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