Nas últimas
dezenas de anos deram-se importantes alterações no mundo da vivência da
religião. Entre antropólogos, sociólogos e filósofos das religiões, nasceram
conceitos como os de “erosão das identidades religiosas”, “religiosidades
difusas”, ou mesmo, expressões quase impossíveis de traduzir para português
como a noção de – pela falta de melhor - “turista religioso”.
Estas ideias
aplicam-se a todo o renascimento religioso nas décadas de setenta do século XX,
um ressurgimento que se manifestou em formas e atitudes totalmente novas: fuga
aos movimentos / igrejas convencionais ou tradicionais; fácil deambulação entre
credos e filiações; criação de uma atitude de pesquisa individual.
Ora, é neste
contexto de afirmação da possibilidade e da liberdade de cada um fazer o seu
percurso, preferencialmente atípico para auto-demonstração da singularidade,
que se devem entender os fenómenos de massificação de obras sobre o fenómeno
religioso. E referimo-nos aos livros de Paulo Coelho, de Dan Brown, ao filme de
Gibson, a toda uma miríade de categorizações biblioteconómicas com que nos
cruzamos nas estantes das nossa livrarias, que vão da espiritualidade ao
esoterismo, passando pelo que no Brasil se chama de “auto ajuda”.
Resultante de um
movimento totalmente livre de pesquisa religiosa, nasceu um imenso campo, um
enorme nicho de mercado, onde cabe tudo o que afirme ser contra os ditames
tradicionais. É essa a pedra de toque de quase todos estes fenómenos: afirmar
que vão contra o instituído, criando, assim, a ilusão a muitos dos seus
leitores de participação nesse desmontar de supostas fraudes milenares ou de
viver experiências espirituais até então quase inacessíveis.
Talvez se possa,
mesmo, alinhar todo este universo de produção bibliográfica em dois grandes
campos. Por um lado, os livros que transmitem supostas vivências religiosas,
espirituais e místicas até então vedadas; Por outro lado, as obras que, voyeristicamente,
levam os leitores a viver um desmontar das grandes estruturas religiosas (nada
mais voyerista neste universo que entrever nas páginas de um livro a
possibilidade do acto sexual entre Jesus e Maria Madalena, por exemplo).
Em ambos os
casos, o essencial é que este retorno ao sagrado, resultante de uma pesquisa
individual não mediada por entidade alguma, levou a um boom editorial e
ao facto de a religião estar na moda – os acontecimentos pós 11 de Setembro
vieram consolidar este fenómeno.
Massificaram-se
as leituras sobre religião. Os best sellers estão ai, mês após mês. Mas
a cultura religiosa da população é cada vez mais baixa. Alguns museus, por
exemplo, estão a adoptar descrições e explicações temáticas nas legendas de
pintura sacra, respondendo à incapacidade dos visitantes compreenderem as
situações retractadas.
E é cada vez
mais baixa a cultura referente ao mundo religioso porque estes livros em nada a
constróem, antes pelo contrário. Mas também porque não existem instrumentos que
forneçam à generalidade da população informação credível e atractiva que venham
colmatar o fim da massificação das catequeses.
Até há duas ou
três gerações, quase toda a população tinha uma cultura religiosa mínima que
advinha da obrigatoriedade da catequese no sistema de ensino. Era uma cultura
facciosa, pobre, não especulativa. Mas neste momento ela simplesmente não
existe.
Não é que se
possa, em condição alguma, defender o regresso a esse sistema, mas urge tomar
consciência de que no mundo das religiões se criam ideias feitas com a maior
das facilidades, julgando que se está perante grandes e inquestionáveis
verdades – porque essa é uma das vocações das religiões, agora transportada
para a função da literatura: a de criar discursos de verdade.
Quantos de nós
sabemos a que correspondem alguns dos feriados religiosos de que gozamos
durante o ano? Esta é a faceta anedótica. Mas existem outras. O actual mundo de
fundamentalismos religiosos é em grande parte alimentado por esta massificação
da incultura religiosa.
Nada haveria a
apontar a livros como os antes referidos, se eles não levassem o leitor, ou
melhor, se o leitor não fizesse com o livro o percurso de criação de uma visão
do mundo. E estas visões romanceadas, mas tidas como verdade por muitos
leitores, são essencialmente fundamentalistas porque apresentam o mundo das
religiões em tons altamente contrastados; uns são bons, outros são maus.
Nesta mecânica
demonizante de parte da realidade, a simplicidade dá lugar ao simplismo. Longe
de se estar a evoluir para um mundo com uma compreensão crítica sobre as
religiões, cimentada na reflexão e no rigor, estamos a caminhar para uma crescente
postura de anulação da tal individualidade que esteve na base deste surto
bibliográfico.
Dominadoras,
estas narrativas empolgantes que levam o leitor a vivenciar o que nunca tinham
imaginado possível, castram o lugar do leitor no processo da leitura. Tudo é
tão simples, tão óbvio, tão elementar, que o leitor simplesmente lê, acredita e
reproduz.
Sem comentários:
Enviar um comentário