Depois do
alarido em torno do Evangelho de Judas, publicado em Portugal no início do
verão passado (em duas edições, uma pela Ésquilo com tradução do original por
Antonio Piñero e Sofía Torallas-Tovar), os media
retomam a temática do Jesus histórico, lançando para os noticiários e as
primeiras páginas dos jornais uma situação que surge como totalmente nova e
provida do dramatismo típico dos assuntos que tudo colocam em causa. Contudo , a
questão é bem mais complexa e merece alguns cuidados no seu equacionamento.
Em primeiro
lugar, há que perceber que o Ocidente cristão desde há muito se habituou à
ideia de que Jesus morrera e, porque ressuscitara e subira ao céu era, de
facto, o Salvador. Esta ideia é tão profundamente enraizada que, muitas vezes,
se refere Cristo, o epíteto, e não Jesus, o nome. Mesmo os não crentes
comungam, muitas vezes, desta visão historicista da ideia de Salvação.
Em consequência
deste aspecto quase civilizacional, foi muito tarde que se escreveram os
primeiros arremedos de biografias de Jesus, textos que tentavam lançar luz
sobre o homem de nome Jesus que, por razões várias, uma parte da humanidade
tomara por Deus, fosse-o ou não. A estranheza neste novo olhar sobre Jesus, com
este novos olhos não confessionais, era tanta que Renan, autor de La Vie de Jésus (Paris: Michel Levy Freres,
1863), perderia por esse motivo o seu lugar no Collège de France. De facto, o
assunto muito coloca aparentemente em causa.
A questão é tão
central na nossa própria formulação civilizacional, que não será por acaso que
é exactamente neste momento que Bento XVI se prepara para lançar um livro sobre
esta temática do Jesus sob o ponto de vista histórico.
Mas nem sempre
foi assim: nem sempre esta religião teve como central a ideia de um salvador
que ressuscita e, consequentemente, não existe (Não pode mesmo existir, ou não
tivera subido aos céus) enquanto defunto.
Ou seja,
interessa verificar que esta religião não nasceu como agora se nos apresenta. O
nome «cristãos», os que seguem Cristo, nasceu em Antioquia já na época de Paulo
- o principal divulgador do Cristianismo que, contudo, não conheceu Jesus. Como
grupo autónomo do judaísmo, esta nova religião teve origem no espaço grego ou,
pelo menos, judaico em diáspora, falante de grego e já não de hebraico. A ideia
messiânica que está na base do nome da religião, kristos, a palavra que servirá como epíteto a Jesus, grafando-se
«Jesus Cristo», é grega e não hebraica. Não é por acaso que a religião passou
para o futuro com a designação de «Cristianismo» e não de «Jesuísmo» ou
«Messianismo».
E isto não quer
dizer que ao hebraismo fosse estranha a ideia de ressurreição como evidência da
ideia de salvação. Ela era comum, quer a judeus, quer a gregos. Mas o caminho
da ideia de salvação não se fazia apenas na dependência da ressurreição. Outras
vias surgem significativamente claras em alguns textos não canónicos: os
Evangelhos de Tomé e de Judas.
Nesses dois
textos, verificamos que, em torno da ideia de Jesus, não existe a necessidade
da morte e ressurreição. Aqui constatamos que, para algumas das comunidades
primitivas de seguidores de Jesus, a ressurreição não era tida como necessária
para se constituir um corpo de crença com os seus seguidores. A morte e
ressurreição, para alguns crentes, não era central e, talvez, nem sequer a
imaginassem.
Naturalmente,
nunca poderemos saber qual a representabilidade relativa desta postura
teológica. Supomos que, tendo em conta que a norma que vingou veio a ser a
visão fundamentada no Cristo, aquele que ressuscitou, estes grupos fossem minoritários.
Mas a verdade é que existiam e, em especial, não era por não acreditarem na
ressurreição que deixavam de ver em Jesus o Filho de Deus... caminhos estranhos
os da História
Enfim, neste
modelo, é totalmente natural imaginar para a figura de Jesus um quadro familiar
como, aliás, algumas tradições nos legaram. A ideia de que teria irmãos, assim
como a de que teria vivido com Madalena, não é apenas criada por Dan Brown....
Ora, a questão
hoje continua a ser complexa e, acima de tudo, incómoda. A eventual descoberta
de um túmulo com sarcófagos e ossadas de um suposto Jesus e seus familiares
aparece (e assim é apresentada) como a prova de uma grande mentira. Procuram-se
testemunhos, leituras, opiniões... tudo é conduzido no sentido de procurar uma
ideia de farsa por detrás da actual maior religião do planeta.
Os cristãos da
Idade Média, que acreditavam nas lendas da vinda de Maria Madalena para o Sul
de França, não deixaram de acreditar em Jesus pelo facto dele lhes ser
apresentado como um homem que, como quase todos os outros, procriou. Os
gnósticos das comunidades de finais do século I, que fizeram o Evangelho de
Judas, não eram menos crentes em Jesus que os que seguiam os textos de Lucas,
Marcos, Mateus e João que no século seguinte foram declarados canónicos.
Será que os
cristianismos actuais, quer o católico, quer o evangélico (este, muitas vezes
profundamente fundamentalista e quase nada crítico em relação à literalidade
dos textos), conseguirão não se sentir abalados com estas descobertas, sejam
elas verdadeiras ou não?
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