Num momento em
que a guerra de Israel contra o Hezbolah parece já não vir a ser um conflito
relâmpago, uma incursão cirúrgica, urge olhar para as palavras que usamos com
um cuidado redobrado, fugindo à leveza da fugacidade das realidades
passageiras.
De facto, no
actual mundo do fast food intelectual e cultural, assistimos
constantemente ao abusivo uso de determinados conceitos, de vocábulos que
nasceram com definição clara do seu sentido mas que, pelo seu uso muitas vezes
irresponsável, o perderam por completo, lançando um caos pantanoso onde tudo
pode ser dito.
Não se trata de
um purismo linguístico, mas sim de um esforço que é necessário fazer para
afastar muitos mal entendidos e muitos juízos de valor.
E é importante
tratar as realidades com os nomes que, de facto, se lhes aplicam, porque os
nomes, as palavras, querem dizer alguma coisa, criam nuances de sentido,
subtilezas de pensamento. A generalização de certas expressões que deixam de
ter um sentido claro é uma das mais profundas provas de iliteracia.
O caso dos
quatro vocábulos usados em título é significativamente importante porque nos
obriga a um exercício de pensamento em que se separam fenómenos diferentes. Sem
se compreenderem, nas suas especificidades, esses fenómenos, podemos estar a
lançar os conflitos para campos ainda mais dramáticos, criando assim uma nova
conflituosidade.
Esta
conflituosidade criada nas opiniões mediante o uso de certas expressões, pode
levar a reacções extremadas por parte de grupos islâmicos e judaicos,
dificultando o diálogo e lançando ainda mais discórdia: o uso errado de certas
palavras leva-nos para um horizonte de criação de uma guerra virtual em torno
de judeus, islâmicos e “ocidentais”.
Historicamente,
o «anti-judaismo» nasceu primeiro. Baseado na ideia de que os judeus
mataram Jesus, o Cristo, o Deus Vivo, criou uma mácula que se estendeu por dois
milénios. Culpados do deicídio, os judeus foram perseguidos por praticarem uma
religião que conduziu a esse crime máximo, constantemente considerados um dos
males do mundo.
O «anti-semitismo»
difere da noção anterior porque perdeu a carga religiosa e se abriu ao
horizonte cultural mais largo do mundo semita. Um anti-semita não persegue um
judeu porque ele pertence a uma religião, a um grupo humano, que optou por
matar Jesus.
O anti-semitismo
existe porque vê nos judeus os descendentes de uma raça inferior, os semitas.
Ora, duas considerações há a fazer: 1) este fenómeno está plenamente enquadrado
numa Europa que não integrou as comunidades judias, e que via nelas algo de exterior
a si mesmas (os semitas não eram europeus, eram asiáticos); 2) esta palavra
teve maior expressão aplicada a judeus, mas designava genericamente todas as
populações com origem no Médio Oriente, incluindo árabes e islâmicos.
Desta forma, o
que se passa em Israel, na Palestina e no Líbano nunca pode ser designado como
anti-semitismo: ambos, palestinianos e israelitas, são semitas.
Donde, é a noção
de «anti-israelismo» que deve ser lançada em campo em detrimento da
anterior. E este campo já pouco tem a ver com a religião, já pouco tem a ver
com a visão de raças inferiores, em tudo tem a ver com uma delimitação de um
estado, em tudo tem a ver com a definição das fronteiras e com as resoluções da
ONU que obrigavam Israel a confinar-se a uma determinada linha fronteiriça.
Ser
anti-israelita não implica uma posição antisemita. Um dos «anti» é de natureza
“rácica”, o outro, é de natureza política.
Mas, obviamente,
nada é linear. Transversalmente, há ainda a ideia de «anti-sionismo»,
conceito de mais difícil definição. O moderno sionismo nasce no século XIX e
tem como objectivo o restabelecimento de uma pátria judaica no espaço do antigo
Israel. Muito do anti-semitismo do século XIX nasce por oposição às linhas de
poder de grandes famílias judias que fomentaram esses discurso de regresso à
Palestina.
Para muitos,
esse regresso implicava um domínio completo e total da região, e não apenas de
um território mais pequeno. Pretendia-se, miticamente, alcançar os vastos
domínios de David e de Salomão, recriando uma certa ideia de império, de
domínio muito acima do nacional.
Complexificando
ainda mais um pouco, o facto de o Estado de Israel ser um Estado Judaico, e de
os judeus pelo mundo fora se sentirem solidários com essa nação (muitas vezes
com dupla nacionalidade simplesmente por serem judeus), provoca o esbatimento
dos conceitos anteriores. Por analogia, as reacções às comunidades judias fora
de Israel são como que um ataque a Israel na medida em que há uma relação
próxima entre essas duas realidades.
Muito se ganhava
se as palavras fossem usadas correctamente. Muito do que de conflito latente se
tem criado na Europa poderia ter sido talvez evitado, ou amenizado, se quem
escreve ou fala sobre estas questões não falasse, por exemplo, constantemente
em anti-semitismo, relançando um fantasma que, agora, quase não existe. Se
continuarmos a falar tanto dele e da forma como o temos feito, talvez o
ressuscitemos ...
Jornal Público, 13 de Agosto de 2006, p. 7.
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