Após o 11 de Setembro, o mundo acordou para a dramática
realidade de uma nova forma de fazer terrorismo. Se até então o terror, esta
forma de luta ilegal e fugindo ao controle dos grupos de nações e às
convenções internacionais, tinha tido como alvo maioritário pequenos grupos
humanos, agora a massificação era a palavra de ordem. Massificação dada pelo
resultado dos ataques, mas também pela magna cobertura dos media.
O mundo das
religiões deixou de ser estrita preocupação dos religiosos. Todos os dias a religião
passou a ser tema presente nos noticiários. Todos os dias passamos a ver
imagens de pessoas a morrer devido a questões apresentadas como religiosas.
Como nas torres de Nova Iorque, nas discotecas em Bali, nos comboios de Madrid
ou no Metro de Londres, percebeu-se que a religião fanática, extremada e
irracional podia chegar a qualquer um de nós.
Durante décadas,
a palavra de ordem fora a «tolerância», ao abrigo das ideias de ecumenismo. A
verdade é que o paradigma do ecumenismo, em que a palavra «tolerar» significa
exactamente o sentido da permissão excepcional, resumiu-se a simples
manifestações em que as confissões, através de alguns líderes, mostraram
conseguir estar juntas no mesmo local. O que se alterou a nível dos crentes e
das suas práticas de ver os membros das outras religiões?
De facto, a
palavra «tolerar», tão usada nas relações entre religiões, merece algum
cuidado. Qualquer dicionário da língua portuguesa nos dá o seu campo de
significado: “atitude de admitir a
outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adoptada por si mesmo; acto
de não exigir ou interditar, mesmo podendo fazê-lo; permissão; paciência;
condescendência; indulgência”. Nada menos ... ecuménico, na medida em que o
espaço dado para os outros é sempre referenciado em relação a si.
É que o
Ecumenismo, tal como o temos visto ser realizado, choca com a visão que a
esmagadora maioria dos seus crentes tem da sua própria religião: a Verdade que
é superior às restantes e que deve ser levada (muitas vezes imposta) aos
outros. E esta é uma contradição insuperável: como pode uma religião dar um
lugar ao “outro” se tem como postulado vir a ocupar o seu lugar?
Donde, por esta
entre outras razões, o Ecumenismo em nada levou a um desaparecimento dos
grandes conflitos religiosos: ele apenas acontece onde já existem condições
para que aconteça, onde os líderes religiosos já estão predispostos ao diálogo
e ao convívio.
Mas mais,
dia-a-dia, todos tomámos consciência de que o universo das religiões afecta e
interfere com o normal mundo de todos nós, sejamos religiosos ou não: as
religiões não são um problema nem um monopólio dos religiosos. A religião,
fazendo parte de uma das faces mais expressivas da actividade humana, a todos
diz respeito e coma vida de todos pode
interferir.
Ora, é neste sentido,
no âmbito deste imperativo que se apresenta à nossa sociedade, que é necessário
ultrapassar o bem intencionado e de extrema importância diálogo
inter-religioso. O ecumenismo, como o vimos crescer em importantes movimentos
nos anos oitenta e noventa do século passado, fechou-se no seio das religiões
e, dentro delas, em grupos muito específicos. É necessário ultrapassar o
universo das religiões e chegar ao da cidadania (onde se encontram religiosos e
não religiosos).
Ao fazer esta
rotação que é de «convívio» para «conhecimento», e de «crentes» para
«cidadãos», superamos a tremenda falha que existe na noção de tolerar. Entre
cidadãos, religiosos ou não, não há lugares de maior direito; todos são
legalmente iguais e com os mesmos direitos e obrigações.
Esta alteração
de enfoque e de forma de tratamento do fenómeno religioso actual cimenta-se no
conhecimento que as diversas partes devem ter umas das outras. Membros de uma
sociedade global e diversa, todos os cidadãos devem ter as ferramentas mínimas
para efectuar a sua cidadania plena e consciente. Estrangeiros ou nacionais,
cristãos católicos, ortodoxos ou protestantes, muçulmanos sunitas, xiitas ou
ismaelitas, judeus, teosóficos, bahá’ís, hindus, budistas, xintuístas,
confucionistas, taoistas, animistas, e muitos outros, todos se integram numa
sociedade que é a portuguesa e, acima de tudo, todos se devem identificar num
corpo que participa das suas decisões, que é constituído por cidadãos
conscientes, exigentes e críticos.
Este desafio, o
do conhecimento das religiões, façam elas proselitismo no campo alheio, ou
abdiquem dessa sua vocação, aplica-se a todos os religiosos e não-religiosos.
No fundo, um pós-ecumenismo que não anula, antes pelo contrário, o ecumenismo,
e que apenas o tenta trazer para um campo de funcionalidade e abrangência mais
significativo.
Jornal Público, 6 de Janeiro de 2007, p. 8.
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