terça-feira, 7 de maio de 2013

Da necessidade de um pós-Ecumenismo


Após o 11 de Setembro, o mundo acordou para a dramática realidade de uma nova forma de fazer terrorismo. Se até então o terror, esta forma de luta ilegal e fugindo ao controle dos grupos de nações e às convenções internacionais, tinha tido como alvo maioritário pequenos grupos humanos, agora a massificação era a palavra de ordem. Massificação dada pelo resultado dos ataques, mas também pela magna cobertura dos media.
O mundo das religiões deixou de ser estrita preocupação dos religiosos. Todos os dias a religião passou a ser tema presente nos noticiários. Todos os dias passamos a ver imagens de pessoas a morrer devido a questões apresentadas como religiosas. Como nas torres de Nova Iorque, nas discotecas em Bali, nos comboios de Madrid ou no Metro de Londres, percebeu-se que a religião fanática, extremada e irracional podia chegar a qualquer um de nós.
Durante décadas, a palavra de ordem fora a «tolerância», ao abrigo das ideias de ecumenismo. A verdade é que o paradigma do ecumenismo, em que a palavra «tolerar» significa exactamente o sentido da permissão excepcional, resumiu-se a simples manifestações em que as confissões, através de alguns líderes, mostraram conseguir estar juntas no mesmo local. O que se alterou a nível dos crentes e das suas práticas de ver os membros das outras religiões?
De facto, a palavra «tolerar», tão usada nas relações entre religiões, merece algum cuidado. Qualquer dicionário da língua portuguesa nos dá o seu campo de significado: “atitude de admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adoptada por si mesmo; acto de não exigir ou interditar, mesmo podendo fazê-lo; permissão; paciência; condescendência; indulgência”. Nada menos ... ecuménico, na medida em que o espaço dado para os outros é sempre referenciado em relação a si.
É que o Ecumenismo, tal como o temos visto ser realizado, choca com a visão que a esmagadora maioria dos seus crentes tem da sua própria religião: a Verdade que é superior às restantes e que deve ser levada (muitas vezes imposta) aos outros. E esta é uma contradição insuperável: como pode uma religião dar um lugar ao “outro” se tem como postulado vir a ocupar o seu lugar?
Donde, por esta entre outras razões, o Ecumenismo em nada levou a um desaparecimento dos grandes conflitos religiosos: ele apenas acontece onde já existem condições para que aconteça, onde os líderes religiosos já estão predispostos ao diálogo e ao convívio.
Mas mais, dia-a-dia, todos tomámos consciência de que o universo das religiões afecta e interfere com o normal mundo de todos nós, sejamos religiosos ou não: as religiões não são um problema nem um monopólio dos religiosos. A religião, fazendo parte de uma das faces mais expressivas da actividade humana, a todos diz respeito e coma  vida de todos pode interferir.
Ora, é neste sentido, no âmbito deste imperativo que se apresenta à nossa sociedade, que é necessário ultrapassar o bem intencionado e de extrema importância diálogo inter-religioso. O ecumenismo, como o vimos crescer em importantes movimentos nos anos oitenta e noventa do século passado, fechou-se no seio das religiões e, dentro delas, em grupos muito específicos. É necessário ultrapassar o universo das religiões e chegar ao da cidadania (onde se encontram religiosos e não religiosos).
Ao fazer esta rotação que é de «convívio» para «conhecimento», e de «crentes» para «cidadãos», superamos a tremenda falha que existe na noção de tolerar. Entre cidadãos, religiosos ou não, não há lugares de maior direito; todos são legalmente iguais e com os mesmos direitos e obrigações.
Esta alteração de enfoque e de forma de tratamento do fenómeno religioso actual cimenta-se no conhecimento que as diversas partes devem ter umas das outras. Membros de uma sociedade global e diversa, todos os cidadãos devem ter as ferramentas mínimas para efectuar a sua cidadania plena e consciente. Estrangeiros ou nacionais, cristãos católicos, ortodoxos ou protestantes, muçulmanos sunitas, xiitas ou ismaelitas, judeus, teosóficos, bahá’ís, hindus, budistas, xintuístas, confucionistas, taoistas, animistas, e muitos outros, todos se integram numa sociedade que é a portuguesa e, acima de tudo, todos se devem identificar num corpo que participa das suas decisões, que é constituído por cidadãos conscientes, exigentes e críticos.
Este desafio, o do conhecimento das religiões, façam elas proselitismo no campo alheio, ou abdiquem dessa sua vocação, aplica-se a todos os religiosos e não-religiosos. No fundo, um pós-ecumenismo que não anula, antes pelo contrário, o ecumenismo, e que apenas o tenta trazer para um campo de funcionalidade e abrangência mais significativo.



Jornal Público, 6 de Janeiro de 2007, p. 8.

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